Folha de S.Paulo

Projeto em SP transforma mulheres comuns em promotoras de direitos

Curso gratuito que ensina caminhos para acessar justiça já formou 5.000 participan­tes em 24 anos

- Flávia Mantovani

Sem as mulheres os direitos não são humanos, afirma o pôster na entrada da casa cheia de plantas, cartazes e grafites na sede da União de Mulheres de São Paulo. Há mais de 20 anos, a organizaçã­o feminista mantém um projeto que propõe aplicar esse lema na prática, transforma­ndo mulheres comuns em promotoras de seus direitos.

Todo sábado, durante dez meses, um grupo com participan­tes de regiões, classes sociais e idades variadas se reúne para aprender sobre a Constituiç­ão Federal, a Lei Maria da Penha, saúde, sexualidad­e, legislação trabalhist­a e previdenci­ária e o sistema internacio­nal de direitos humanos, entre outros temas.

São as PLPs, como elas se denominam —sigla para Promotoras Legais Populares, nomenclatu­ra usada em diferentes países latino-americanos para mulheres que passam por esse tipo de formação.

Foram mais de 5.000 alunas desde 1995, quando o projeto começou. Nos últimos anos, os encontros têm ocorrido na Câmara Municipal de São Paulo.

“A gente faz em um espaço público para dar visibilida­de às mulheres e para que elas possam aprender a usar o microfone, a fazer sua voz ser ou- vida”, afirma Maria Amélia Teles, uma das coordenado­ras.

Amelinha Teles, como é conhecida, defende os direitos das mulheres há décadas.

Enquanto lembra de algumas leis que vigoravam havia não muito tempo no Brasil — o homem podia anular o casamento se a mulher não fosse virgem, o pai podia deserdar uma “filha desonesta” e a mulher tinha que pedir autorizaçã­o ao marido para trabalhar—, ela conta que o projeto das PLPs surgiu quatro anos após a Constituiç­ão de 1988.

“Na Constituin­te, foi muito forte a atuação dos movimentos feministas para garantir a igualdade jurídica entre homens e mulheres. E a gente conseguiu essa igualdade, ainda que formal. Mas percebemos que poucas brasileira­s conheciam os direitos que tinham conquistad­o”, diz.

Começou, então, o curso de São Paulo, em 1992. Gratuito, é conduzido por profission­ais voluntária­s. O lanche é bancado pelas alunas que podem contribuir, e o dinheiro para a formatura é arrecadado em uma festa julina promovida por elas. Não há outras fontes de financiame­nto.

Para 2019, as inscrições se encerraram e superaram 800. É feito um sorteio para selecionar, em média, 150 participan­tes, das quais apenas cerca de 40 costumam ir até o fim.

O sorteio considera os fatores raça e idade, para termos um grupo representa­tivo da população feminina. São os únicos critérios”, diz Marília Kayano. “O per filé o mais variado possível. Temos de meninas de 15 anos amulheres de 85, brancas, negras, amarelas, gays e héteros, mães e não mães”, afirma.

A ideia é que as participan­tes se tornem multiplica­doras do conhecimen­to que adquirem, além de estarem aptas a acolher outras mulheres que precisam de auxílio. “É difícil para uma mulher em situação de violência saber para onde ir, o que fazer. As PLPs oferecem uma escuta qualificad­a para ajudara encontrar uma solução”, diz Marília.

Foi o caso da analista de pesquisa Kelly Guedes, 32, PLP deste ano, que usou sua experiênci­a quando a família descobriu que sua avó era agredida por seu avô.

Graças ao projeto, ela soube onde buscar auxílio e conseguiu se impor quando foi mal atendida na delegacia ena defensoria pública .“Não queriam nos deixar falar coma advogada. Maseu estava preparada par adar respostas, usar termos jurídicos. Conseguimo­s a medida protetiva”, diz.

Ela também soube orientar a família para compreende­ra avó, que não tinha revelado o caso por medo de gerar uma briga na família e por sofrer de depressão.

“A primeira reação é culpar a vítima, perguntar por que ela não contou antes. Esse preparo que eu tive foi importante para mostrar que ela teve os motivos dela para passar por aquilo por tantos anos. Conseguimo­s conduzir tudo do jeito que minha avó queria”, diz.

Formada em direito, a PLP Kaká Palácio, 38, diz que o projeto vai muito além dos conhecimen­tos na área jurídica. “A gente aprende a se organizar coletivame­nte e a conviver com mulheres muito diferentes, que provavelme­nte nunca se uniriam de outra forma. Isso quebra o estereótip­o de que mulher briga, compete.”

Muitas alunas relatam transforma­ções internas. Mãe de uma jovem de 22 anos, a assistente social Flávia Ribeiro, 42, aprendeu a se livrar da culpa por ter se separado do pai de sua filha. “Eu achava que deveria ter aguentado aquele rela- cionamento para que ela não sofresse tanto”, conta.

“Foi um processo de muita descoberta. Compreendi que não sou só mãe, sou gente. Antes não conseguia me ver como mulher. Hoje não me vejo mais como aquela pessoa que vivia só fazendo tarefas de casa, carregando sacolas de mercado. E isso não me faz menos mãe”, diz.

Negra, a assistente social Rosely Santiago, 54, diz que costumava relevar os episódios de racismo que sofria. “Por não querer me indispor com a pessoa, eu aceitava. Falava para mim mesma que era besteira, ‘mimimi’. Nesse curso, eu tirei uma venda dos meus olhos”, define, emocionand­ose durante a entrevista.

Além de São Paulo, o projeto já foi levado a outras áreas do país: para ribeirinha­s do Amazonas, quilombola­s do Pará, moradoras do Sertão de Pernambuco e do interior de São Paulo. Há redes de promotoras legais populares em mais de 20 cidades.

“Deu certo porque a gente atrai gente boa. Quem vai é porque quer, não tem aquela coisa de que vai porque tem certificad­o. E também porque as pessoas que nos ajudam, o que seria o corpo docente, é muito qualificad­o. Junta tudo isso e dá um caldo maravilhos­o”, diz Amelinha.

Para ela, é perceptíve­l a diferença das alunas do início do projeto, que chegavam “tímidas e reprimidas”, para as de agora, “mais informadas e autônomas”. “Somos mais da metade da população e continuamo­s sendo discrimina­das. Não podemos ser considerad­as incapazes. Temos muita riqueza, força, temos direito à cidadania plena. O feminismo é necessário por isso.”

 ?? Patricia Stavis/Folhapress ?? (À partir da esq.) Flavia Ribeiro, Beatriz Coppi, Kaká Palacio Cunha, Teresinha Santos; na frente, Marilia Kayano, Glaucia Matos Adeniké, Amelinha Teles, Rosely B. Santiago promovem curso gratuito que ensinam direitos a mulheres
Patricia Stavis/Folhapress (À partir da esq.) Flavia Ribeiro, Beatriz Coppi, Kaká Palacio Cunha, Teresinha Santos; na frente, Marilia Kayano, Glaucia Matos Adeniké, Amelinha Teles, Rosely B. Santiago promovem curso gratuito que ensinam direitos a mulheres

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