Folha de S.Paulo

‘Quem tem de sentir vergonha é ele, não eu’, diz ex-paciente

- Alberto Rocha/Folhapress Depoimento a Fernanda Mena

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Empresária paulistana relata caso de abuso sexual na casa do médium em Goiás

Há cinco anos a empresária paulistana de origem libanesa Aline Saleh, 29, guarda um segredo relevado, no sábado (8), na voz de outras mulheres. Ela relata ter sido abusada sexualment­e pelo médium João de Deus em 2013, quando esteve com a avó na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), em busca de cura e espiritual­idade.

Saleh contou sua história à Folha sem medo de registrar sua identidade e seu rosto. “Quem tem de sentir vergonha é ele, e não eu.”

A assessoria do médium não retornou as ligações da Folha.

Tenho mediunidad­e desde pequena. Via vultos, tinha sonhos fortes. E vivia à procura de meios para entender melhor esses fenômenos e me desenvolve­r espiritual­mente. Nunca tinha ouvido falar de João de Deus até 2013, quando minha avó me convidou para uma visita ao médium em Abadiânia, Goiás.

Ela queria curar as dores de uma contusão no braço. Pra mim, era uma aventura, porque eu já tinha frequentad­o centro de umbanda, e tinha algum conhecimen­to da relação com entidades e médiuns.

Achei espantoso como a cidadezinh­a toda gira em torno dele. Há fotos em toda parte. As pessoas são doutrinada­s, e o lugar é cheio de gringos.

A Casa Dom Inácio de Loyola, onde ele atende, é linda e cercada por natureza. Na porta, um grupo canta e toca violão. O clima é de paz. Parecia ser um lugar que fazia o bem.

As pessoas rezam e dizem que você vai se sentir melhor. É assim que, aos poucos, vão comendo a sua mente.

Entramos na Casa, por um corredor de pessoas de branco, rezando e meditando em silêncio. Existe uma vibe boa, todo mundo está em busca das mesmas coisas: uma cura, uma esperança, uma palavra.

Ao final do corredor de boas vibrações, numa espécie de púlpito, fica João de Deus, numa cadeira, supostamen­te incorporad­o por uma entidade.

Minha avó foi antes de mim. Falou de seu braço. Ele nem olhou na cara dela. Rabiscou uma receita de passiflora, vendida numa casinha ao lado.

Na minha vez, perguntou o que buscava. Disse que sofria com a mediuninda­de, que me fazia bem e mal porque não sabia controlar. A entidade pediu que procurasse o “médium João” ao final da sessão.

Ele atende numa salinha. Quando cheguei, havia três mulheres na espera. Do outro lado da porta, o médium berrava: “Eu estou cansado! Não vou mais atender ninguém! Manda todo mundo embora!”.

Seu assistente se desculpou, dizendo que o atendiment­o seria adiado. Achei estranho.

De noite, tive um sonho horrível. João de Deus aparecia de preto, do lado da minha cama, e sugava minha energia, com as mãos sob meu rosto. Não conseguia me mexer.

Acordei com um grito. Caí num choro descontrol­ado. Minha avó se assustou. Aos 24 anos, pedi para dormir com ela —o que nunca tinha feito.

Na manhã seguinte, no encontro com João, falei do sonho. Ele disse que era normal, que estava me passando energia, não tirando, e me falou que eu era muito especial.

Pediu que me sentasse na cadeira dele, no púlpito, até sua chegada à sessão, de olhos fechados. Disse para eu “comandar a energia do espaço”.

Quando começou a sessão, João pediu que eu me sentasse ao lado. Ao final, fui para a sala dele, onde havia, de novo, apenas mulheres na espera. Isso me chamou a atenção.

Ele chamou a minha avó e disse que eu tinha um dom e que poderia trabalhar com ele, fazendo o bem e curan- do. Minha avó ficou orgulhosa.

Aí ele disse: “A senhora já almoçou? Não? Vá, que eu vou ficar aqui conversand­o um pouquinho mais com a Aline”.

Nessas, eu já estava supertensa. O ajudante voltou e falou que ali estava “aquela moça com o filho”. O médium olhou pra mim e disse: “Dá um passe nele”. Falei que não sabia. E João: “Sabe, sim!”.

Quando terminei, ele falou: “Pronto, ele já vai melhorar”.

Não fiquei confortáve­l. E piorou. Quando eles saíram da sala, João passou a chave na porta de vidro jateado. Virou e falou: “Olha, menina, você tem um dom. Você é muito especial. Viu o que acabou de fazer no menino?”. E eu, quieta.

“Agora, vou reenergiza­r os seus chacras. Fica de pé!” Começou a pegar nas regiões dos sete chacras [pelve, umbigo, estômago, coração, garganta, testa e topo da cabeça].

Disse que eu estava com muita energia e precisava de realinhame­nto. Abriu a porta do banheiro e me colocou pra dentro. Pediu que, de costas, com as mãos nos quadris, me mexesse para liberar energia.

E, nisso, você se vê acuada e não sabe o que fazer. Sentia meu corpo todo gelado. Ele falava “mexe, mexe”. E eu dizia: “não quero, não consigo”.

Ele falava o tempo todo que estava “tudo certo”, e começou a me encoxar, rebolando.

Aí pegou a minha mão e colocou no pinto dele, flácido para fora. Puxei a mão de volta.

E disse que era “assim mesmo”, que era importante e tal.

Tentou, de novo. Eu reagi. “O que é isso? Isso não está certo!”. E me virei.

Ele saiu pra sala, fechou a calça, sentou no sofá. Sentei no segundo sofá, petrificad­a. João abriu a porta. Perguntou se minha avó tinha almoçado, e pediu que a trouxessem.

Quando ela apareceu, ele voltou a me elogiar para ela. Comecei a me sentir mal. Pedi licença e saí correndo.

Fora da casa, desabei num choro que não acabava. Fiquei confusa e liguei pra minha tia. “Será que estava ficando louca? Será que tinha de ter cedido?”. Ela falou: “Sai daí agora, Aline! Esse cara é louco!”.

Para minha tristeza, minha avó desconfiou do meu relato. Ela disse que o médium era um homem maravilhos­o, que curava as pessoas, e que eu estava confundind­o os fatos.

Queria ir embora imediatame­nte. Era insuportáv­el ficar num lugar onde as fotos dele estão em toda parte. Consegui remarcar o vôo de volta a São Paulo no dia seguinte.

Ainda na pousada, comecei a pesquisar na internet. Não encontrei nenhuma associação de termos como “fraude” ou “abuso sexual” e o nome de João de Deus, a não ser um comentário num blog. Resolvi procurar em inglês “John of God” e achei bastante coisa. Fiquei com medo. Achei que ele poderia vir atrás de mim porque eu havia fugido.

Voltei rezando. Em casa, deitei na cama da minha mãe e passei três dias chorando, sem conseguir sair. É o tipo de coisa faz a gente pensar: a culpa é nossa. Deveria ter gritado? Feito um escândalo?

A terapia me salvou de um trauma maior. Consegui me libertar. Hoje, tenho consciênci­a de que ele é uma pessoa doente, que recebe suas vítimas num delivery de esperança de cura. Hoje, não tenho vergonha nenhuma do que aconteceu. Quem tem de se envergonha­r é ele!

Falar sobre isso me parece o melhor jeito de libertar mulheres abusadas da culpa e da vergonha, além de evitar que isso ocorra com outras.

Descobrir casos iguais ao meu fez com que eu me sentisse abraçada. Foi um alívio imenso. E saber eles estão se tornando públicos não me traz sentimento de vingança, mas de Justiça.

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Aline Saleh, 29, relata ter sido abusada

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