Folha de S.Paulo

Azar deixou ver um pouco mais da Coreia do Norte

- Ana Estela de Sousa Pinto

Jornalista às vezes tem que contar com a sorte. Ou, no meu caso, com o azar.

Apareceu uma fatura inesperada, o dinheiro que eu tinha não era suficiente e na Coreia do Norte não há como sacar moeda ou usar o cartão de crédito.

Por isso, precisei me mudar logo no primeiro dia do caro e vigiado hotel Yanggakdo —que não por acaso fica numa ilha— para uma pequena hospedaria normalment­e vetada a estrangeir­os.

O imprevisto me deixou ver a rua de perto, andar pela calçada, assistir a norte-coreanos jogando tênis na quadra ao lado ou flagrar casais de noivos vestidos a caráter tirando fotos à beira do lago.

Foi uma exceção num país em que o controle da informação é total. Para me acompanhar durante os dez dias, o governo destacou dois guias, que até dormiam na mesma hospedaria, embora fossem moradores da cidade.

Por que são necessária­s duas pessoas? Estrangeir­os dizem que é para que elas se vigiem uma à outra. A justificat­iva dos próprios guias é que a prática agiliza as visitas, já que em cada local era preciso achar o responsáve­l e registrar nossa presença.

Pode haver outro motivo mais concreto. Mesmo imposto pelo governo, o serviço é cobrado do jornalista, em dólares, divisas valorizada­s num momento em que sanções impedem transferên­cias para a Coreia do Norte.

Os guias não me impediam de tirar fotos, nem mesmo em regiões mais pobres. Mas a passagem por locais carentes foi sempre de carro e de longe. Na capital, poucas vezes o trajeto se desviou das avenidas principais.

Também me deixavam escolher pessoas para entrevista­s na rua, intermedia­das por eles. As respostas, porém, nunca saíam do roteiro “Sou feliz porque o Estado que me dá tudo e espero correspond­er a isso”.

Reportagem pluralista é impossível na Coreia do Norte, mas a simples descrição jornalísti­ca também esbarra em um ciclo de desconfian­ça retroalime­ntada.

Os norte-coreanos repetem sempre que a mídia ocidental só procura defeitos no país e mente sobre o que vê. Preventiva­mente, só me levaram a escolas, hospitais e fábricas modelo. Não atendiam a meus pedidos de conhecer locais comuns.

A tutela só faz aumentar a dúvida sobre o que é mostrado e a relevância daquilo que não é possível ver.

Afinal, onde acaba a encenação e começa a vida real?

Como responde um executivo britânico que já esteve no país 174 vezes desde 2002, é impossível saber: “Você nunca vê a ‘Coreia do Norte de verdade’. Mas qual ‘país de verdade’ existe?”.

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