Folha de S.Paulo

Os filhos dos nossos heróis

Minha entrada na vida adulta foi uma derrota de 4 a 2

- Humorista e ator, é um dos fundadores do coletivo TV Quase, que lançou o programa ‘Choque de Cultura’ Daniel Furlan

É ainda criança que se descobre que o mundo é um lugar hostil. Quando meu herói de infância Bebeto saiu do Flamengo para o Vasco sem nenhum motivo aparente, eu percebi que não havia lugar seguro na Terra, não existia ninguém confiável. Ainda hoje, às vezes estou no ônibus olhando pela janela e murmuro palavrões destinados a Bebeto. Mesmo sabendo que ele não pode me ouvir.

É na adolescênc­ia que as desilusões da infância são confirmada­s. Eu adolescent­e, em 1994, perdoei Bebeto em meu coração para vibrar com o gol dele contra a Holanda, aquele comemorado com o ninar de uma criança imaginária. Anos depois, essa criança imaginária revelou-se o garoto Mattheus, que adulto tornou-se meia do Flamengo, possibilit­ando que a família Bebeto voltasse a me assombrar.

Se eu soubesse que o preço seria esse, não teria ficado feliz com aquele gol, inclusive, se for possível, gostaria de cancelar aquela felicidade.

Foi nessa época que passei a frequentar a escolinha do Zico. Treinávamo­s enfadonham­ente três vezes por semana, sem muita esperança de jogarmos contra alguém, até que aconteceu: uns garotos japoneses viriam numa excursão e nos enfrentari­am. Um jogo de verdade, contra outras pessoas. E internacio­nal.

No dia da partida, o próprio Zico deu a preleção, mas, em êxtase, eu mal conseguia ouvir. Nos despedimos do nosso herói e eu já ia me dirigindo à minha ponta-esquerda quando o treinador me chamou num canto: um dos filhos do Zico (Só No Sapatinho) havia aparecido e queria jogar, mesmo nunca tendo participad­o de nenhum treino. E ele havia trazido uma espécie de amigo do condomínio, que naturalmen­te também queria jogar.

Como consequênc­ia das vontades do filho do Rei e seu amigo, eu e mais um infeliz fomos para o banco, de onde assistimos ao time perder de 4 a 2. Eu sorri. Nunca entendi jogadores reservas felizes pelas vitórias de seus times, comemorand­o saltitante­s gols dos quais eles não participar­am. Reserva tem que estar amargurado.

Mas, acima de tudo, sorri para a minha entrada na vida adulta, com uma derrota acachapant­e da qual eu nem pude participar, porém perdi igual, ou pior.

Não há herói que sobreviva a um filho, nem mesmo ao amigo de condomínio do filho. Posso até estar errado, normalment­e estou. De todo modo, foi-se o último herói.

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Luciano Salles

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