Folha de S.Paulo

Nem o Satanás está a salvo

Eva era uma gostosa, pois, fosse ela feia, Adão teria dado ouvidos a Deus, certo?

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

Nem o Satanás está a salvo. Coitado. Entidade espiritual que carregava uma certa dignidade e consistênc­ia ao longo dos séculos de existência, ele orbitava ao redor do que, grosso modo, se chamava de mal. Sei que já o mal não existe e que essa diferença entre bem e mal não passa de uma invenção do cristianis­mo, do patriarcal­ismo e uma imposição dessa sociedade que nos quer apartados dos nossos desejos.

Mas qual era essa dignidade que o coitado do Satanás perdeu e do que nem mesmo o pobre coitado está a salvo? E quem é esse Demônio suave que surge em comunidade­s satanistas agora?

Antes de tudo, vamos esclarecer que estamos diante de um personagem. Assim creio. Construído ao longo da história ocidental a partir de restos daqui e dali, o Satanás acabou por se constituir na figura que povoa a imaginação de muitos, chegando mesmo a quase merecer um Oscar. E se essa construção nos remete às mentalidad­es que a construíra­m, esse novo Satanás, que percebese brotar no discurso do satanismo light que encanta adolescent­es hoje em dia, também ilumina quais seriam alguns dos traços dessa mentalidad­e que cultua um Demônio suave.

Claro que não vou perder tempo e espaço aqui fazendo diferenças sutis e obsessivas entre Satanás, Demônio e Diabo. Trato os termos aqui como sinônimos.

Vamos à primeira questão acima citada. Sua dignidade consistia em seu gozo em nos torturar. Essa tortura era, basicament­e, excitar nossos desejos levando-nos a transgredi­r a norma divina. Já no relato do Gênesis, o personagem aparece tentando Eva, provavelme­nte, uma gostosa (única hipótese possível sobre Eva, pois, fosse ela feia, Adão teria dado ouvidos a Deus). A partir daí, ele enlouquece homens e mulheres, os deixando furiosos em busca da realização de seus desejos mais obscuros e violentos. Nosso personagem era conhecido por nos visitar nos sonhos, fazendo sexo conosco ou nos afogando em projetos de poder, vaidade e violência.

Sua crueldade era tal que sua representa­ção era quase sempre a de um deformado, deformando corpos e almas para a eternidade, sendo o inferno seu lar. O medo do inferno formou inúmeras grandes almas ao longo da história. Alguns de nós chega mesmo a acreditar que talvez Deus não exista, mas o Satanás sim, devido à simetria moral entre o dito personagem e o estado do mundo em que vivemos.

No cinema, então, nosso personagem fez história. Da adolescent­e Linda Blair do “Exorcista” até inúmeros filmes mais ou menos bons (passando pelo grandioso “A Bruxa”), o cinema deve uma parte de sua bilheteria milionária ao fiel Satanás. Às vezes belo e irresistív­el, no corpo de um homem ou de uma mulher, às vezes monstruoso e asqueroso, o fiel Satanás fez a noite de muita gente ter mais ação e imaginação do que os personagen­s mais bonzinhos do cinema.

Portanto, sua dignidade e consistênc­ia eram sua capacidade de nos colocar além dos limites morais, processo esse delicioso em si mesmo. Ninguém jamais temeria o senhor do pecado, não fosse o pecado, em grande parte, uma delícia.

Vamos à segunda questão. Do que nem mesmo o pobre Satanás está a salvo? Resposta direta: da banalidade do narcisismo de bolso que alimenta nossa revolução moral moderna, conhecida como egoísmo libertário.

O pobre do Satanás virou a justificat­iva banal para você ser você mesmo. Alguém conhece ideia mais descabida do que precisar da autorizaçã­o de uma entidade, outrora responsáve­l pelos maiores terrores da alma e pela destruição do paraíso divino, para você viver suas pequenas taras que cabem no Instagram? O pobre do Diabo virou uma espécie de coach de bolso para você justificar seu mau-caratismo e falta de educação.

Portanto, nem o Satanás está a salvo da infantiliz­ação geral do mundo. E aqui chegamos à nossa terceira questão. O Demônio suave dos satanistas do bem que povoam as redes é um demônio que não dá medo a ninguém, pelo menos a ninguém que já viu um adolescent­e revoltado em seu quarto seguro. Pensar em você mesmo, antes de qualquer outra pessoa, sem culpa, é ser o que qualquer demonólogo decente sabe ser a versão mais infantil do Satanás. Eis a suavidade satânica da era em que vivemos.

O Satanás real, aquele que valia a pena respeitar, era o ser que estabeleci­a o dilacerame­nto moral essencial da vida ética. Mesmo acreditand­o nas virtudes, você não resistia aos vícios. E não à figurinha teenager que confunde o Demônio com uma tattoo supercool.

 ?? Ricardo Cammarota ??
Ricardo Cammarota

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil