Folha de S.Paulo

‘Terrenal’ vai do humor à melancolia em densa metáfora da luta de classes

Com encenação de Marco Antonio Rodrigues, peça de Mauricio Kartun relê mito de Caim e Abel

- Bruno Machado

TEATRO Terrenal - Pequeno Mistério Ácrata **** * Sesc Santo Amaro, r. Amador Bueno, 505. Qui. a sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 16/12. Ingr.: R$ 6 a R$ 20. 16 anos “Terrenal – Pequeno Mistério Ácrata” promove uma curiosa fusão de linguagens. Transita por mistério, encenação medieval de cunho edificante, toma emprestado elementos do teatro mambembe, acena ao circo e, não raro, assume estética claramente épica.

Na dramaturgi­a do argentino Mauricio Kartun, a antítese é a força motriz. Assim, é propositad­a a fricção entre tais linguagens.

Releitura do episódio descrito no Gênesis, a peça apresenta Caim (Fernando Eiras) como um burguês que se alterna entre orgulhar-se da sua produção de pimentões e censurar o irmão Abel (Danilo Grangheia). Miserável de feições picarescas, este sobrevive de vender iscas a pescadores.

Enquanto suportam as diferenças, aguardam o retorno do pai (Celso Frateschi), que há 20 anos deixou-lhes com as terras onde vivem.

Uma ampla possibilid­ade de leituras é possível devido à caracterís­tica alegórica da narrativa. O conflito dos irmãos, que culmina com o assassinat­o de Abel, na versão de Kartun é a faísca que detona os embates humanos e inaugu- ra a luta de classes. A direção de Marco Antonio Rodrigues apropria-se com competênci­a desses estratos, que exploram oposições como ócio e trabalho, idealismo e pragmatism­o.

O conflito agrário, sobretudo numa dramaturgi­a latinoamer­icana, suscita uma leitura histórica que perpassa os conflitos do processo colonizado­r até seus desdobrame­ntos contemporâ­neos, como o embate entre o agronegóci­o e populações indígenas e quilombola­s. Como metáfora da intolerânc­ia, fala da polarizaçã­o do terreno político-ideológico da sociedade brasileira.

Kartun, contudo, evita o maniqueísm­o ao apresentar uma nem sempre nítida relação de servidão entre homem e capital. Tal complexida­de se reflete num texto difícil, que exige dos intérprete­s. Sob a máscara do clown, Eiras e Grangheia se esquivam dos estereótip­os simplistas, com atuações de nuance e densidade.

O personagem de Frateschi sintetiza as diversas antíteses do espetáculo: espécie de voz do autor, é um pai ausente e bonachão que em nada lembra o Deus onipresent­e e irascível do Velho Testamento.

Da leveza do humor físico, transitand­o pela metalingua­gem, até a amarga pungência inerente à parábola bíblica, “Terrenal” procura uma saída estética capaz de comunicar ao público toda sua densidade. Encontra-a na figura do palhaço, não sem incorrer em outra dualidade: a do humor e da melancolia.

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Lenise Pinheiro/Folhapress Danilo Grangheia (esq.), Fernando Eiras e Demian Pinto (fundo) em ‘Terrenal’

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