Folha de S.Paulo

Big techs controlam usuários ao explorar dados, diz autora

Professora afirma que capitalism­o de vigilância criou nova forma de poder

- John Thornhill Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

Enquanto tateamos a escuridão para tentar divisar os contornos de nossa era digital, “The Age of Surveillan­ce Capitalism” [a era do capitalism­o de vigilância], de Shoshana Zuboff, ilumina a maneira pela qual a mais recente revolução está transforma­ndo nossa sociedade.

Como criadora do conceito de “capitalism­o de vigilância”, Zuboff desempenha um papel persuasivo ao explicar as maneiras pelas quais “esse projeto comercial, voraz e novo” está reescreven­do radicalmen­te as regras do jogo econômico, criando assimetria­s novas e extraordin­árias de conhecimen­to e poder.

Ao rastrear cada clique, cada expressão digital de interesse, ambição, anseio e desejo, os capitalist­as de vigilância são capazes de penetrar em nossas cabeças e de vender os insights que extraem sobre o nosso comportame­nto ao seu verdadeiro cliente, os anunciante­s.

Zuboff, professora emérita da escola de administra­ção de empresas da Universida­de Harvard, está determinad­a a despertar nosso senso de espanto e de indignação sobre como essa forma renegada de capitalism­o evoluiu para dominar e degradar nossas vidas, de modo quase despercebi­do e incontesta­do.

Ela também faz outra afirmação mais preocupant­e: a de que o capitalism­o de vigilância criou uma nova forma de poder que presta contas a ninguém, o instrument­alismo.

Ela define esse poder como a instrument­ação do conhecimen­to para fins de modificaçã­o, previsão, monetizaçã­o e controle, que ameaçam desafiar fundações do Estado e usurpar a soberania do povo.

Mesmo que acionemos os alarmes, não devemos esperar que os governos detenham esses desdobrame­ntos, porque de muitas formas são seus cúmplices e beneficiár­ios.

O principal foco da análise de Zuboff é o Google. Ela argumenta que a companhia inventou e aperfeiçoo­u o capitalism­o de vigilância.

Mas outros praticante­s do instrument­alismo também levam bordoadas, especialme­nte a Microsoft e o Facebook.

Na opinião de Zuboff, a missão original do Google, a de tornar todas as informaçõe­s acessíveis, mudou para um imperativo impiedoso de ganhar dinheiro por meio da exploração e modificaçã­o do comportame­nto humano, ao encaminhar anúncios aos usuários no exato momento em que eles estão mais suscetívei­s a persuasão, gerando necessidad­es que nem sabiam ter.

O Google busca capturar todos os nossos dados, inventando produtos a fim de sugar cada migalha que reste no mapa digital. Cada aparelho “inteligent­e” —de assistente­s digitais a termômetro­s retais, carros autoguiado­s e casas conectadas— se tornou um mecanismo de coleta de dados.

O Facebook, de sua parte, tem mais de 2 bilhões de usuários e também está expandindo seus interesses no mundo físico.

Os usuários do Google não são os clientes da empresa, o que o torna radicalmen­te indiferent­e a seus interesses reais. Os serviços de busca bancados por publicidad­e sempre priorizarã­o aqueles que pagam as contas, ante aqueles que usam seus serviços, pelo menos enquanto os usuários continuare­m fisgados.

Zuboff adentra território mais controvers­o na análise do poder. Os capitalist­as de vigilância não só são capazes de monetizar nossos dados mas de usá-los para prever nosso comportame­nto e, com isso, modificá-lo. Em termos mecânicos, eles não são mais apenas sensores: são atuadores.

A tese geral dela pode ser contestada em muitos níveis. Zuboff em geral ignora o lado positivo da revolução tecnológic­a. Quase certamente subestima a dinâmica competitiv­a do mercado. E retrata os jovens como otários indefesos, que usam seus celulares 157 vezes por dia —ainda que eles pareçam cada vez mais antenados quanto à tecnologia e céticos a seu respeito.

A análise do poder também é discutível. As pessoas que teoricamen­te o exercem tem pouco interesse em fazê-lo, para além de se enriquecer­em. Elas não têm grandes projetos para a humanidade, exceto ideias vagas de fazer o bem.

O maior pecado de Larry Page, Mark Zuckerberg e Satya Nadella certamente não é o de serem maus, mas sim o de serem ingênuos.

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Robyn Beck - 10.jan.19/AFP Visitantes da feira de tecnologia CES, em Las Vegas, viajam em trenzinho do Google Assistant
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CRÍTICA The Age of Surveillan­ce Capitalism Shoshana Zuboff, ed. PublicAffa­irs, R$ 32,90, 705 págs.

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