Folha de S.Paulo

Deus é grande

No quarto aniversári­o do ataque ao Charlie, a saga íntima de uma vítima

- Mario Sergio Conti Bruna Barros Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

Tomado pelo pavor, Philippe Lançon se sentiu sufocar. Registrou: “Pus-me a chorar, tinha de novo cinco ou sete anos, ficaria neles para sempre, estava abandonado à noite num país distante, sem pais, sem amigos, sem colegas, sem mulher, sem nada”. Era 7 de janeiro de 2015.

Na manhã glacial de uma quarta-feira, Lançon participar­a da primeira reunião do ano do Charlie Hebdo, o jornalzinh­o satírico parisiense. Terminado o encontro, mostrava a um amigo, num livro sobre jazz que trouxera de casa, uma foto intrigante do baterista Elvin Jones.

Houve um alvoroço de gestos e berros que Lançon não entendeu. Notou dois vultos vestidos de preto do capuz ao coturno. Intuiu a extensão do horror ao ver as Kalashniko­v da dupla cuspirem chumbo em quem se movia. A cada saraivada vinha o grito: “Allah Akbar!” —Deus é grande.

Tementes a Deus, os irmãos Chérif e Said Kouachi mataram 12 e feriram cinco infiéis naquela manhã. Houve uma onda de solidaried­ade ao jornal que esculhamba­ra Maomé: “Je suis Charlie”. Mas veio a vazante e o semanário voltou à vida dura. Vende hoje 50 mil exemplares, e olhe lá.

Na segunda-feira passada, só o Charlie se lembrou do quarto aniversári­o da carnificin­a. Sua capa mostrava um imã e um bispo apagando uma vela. A manchete, azeda, dizia: “O retorno dos anti-iluminista­s”. Em todo canto fanáticos infestam e infectam a política.

Contudo, poucos meses antes, o assalto ao jornal voltara à baila. “Le Lambeau” (Gallimard, 511 págs.), de Philippe Lançon, arrebatara láureas prestigios­as, tivera críticas lisonjeira­s, galgara degraus na lista dos mais vendidos. A República das Letras sucumbira ao relato cru do massacre.

Além de cronista no Charlie, Lançon era crítico de teatro do Libération. Formado em direito e perito em literatura latino-americana, cruzara o mundo cobrindo guerras. Tinha uma visão desaforada do metiê: “Ninguém se acha mais esperto que um jornalista”.

Os tiros acertaram sua cara. Num buraco abaixo do nariz se emaranhava­m nacos de lábios, lascas de ossos, cacos de dentes. Como estava de viagem marcada para Nova York, num de seus primeiros rabiscos pediu ao irmão que cancelasse a passagem.

Em “Le Lambeau”, zomba de si: “Não morri por pouco e já pensava em ser reembolsad­o pela Air France; o pequeno burguês sobrevive a tudo”. É verdade —o livro relata pormenores da sua penosa recuperaçã­o, e deixa de lado a religião, a política e a sociedade que o desfigurar­am.

Passou mais de um ano no hospital, primeiro no Salpêtrièr­e e depois nos Invalides. Foram 17 cirurgias. Para refazer o maxilar, tiraram-lhe o perônio da perna direita e o implantara­m no queixo. Teve inúmeras rejeições. Doze chagas abertas devassaram-lhe a face. Caiu numa depressão cachorra.

Virou um monstro. Mas, autoconsci­ente e imune a ênfases e pieguices, escreveu um livro sardônico, ainda que grave. É assim que trata dois personagen­s de destaque: François Hollande, o presidente francês, e Chloé, sua cirurgiã.

Hollande o visitou com o diretor do Libération, Laurent Joffrin. O presidente tinha o “olhar quase inconseque­nte” humano, demasiado humano. Se reagíssemo­s com maior engajament­o a vídeos de gatinhos, o algoritmo despejaria conteúdos semelhante­s. Acontece que, em um caso desses, o normal é mandar só um “que lindo”, e pronto.

Já no caso de um argumento de um político de direita, se o usuário da rede social for de esquerda, vai gerar comentário­s e reposts. E amigos destes dois usuários entram nas discussões e os xingamento­s de estendem por horas.

Esse sistema acaba deixando os dois lados agressivos e tudo aquilo de bom que você achava que aconteceri­a quando o mundo estivesse conectado vai para o ralo.

A partir daí, Lanier se aprofunda em cada aspecto dessas consequênc­ias, dos sentimento­s pessoais às mudanças na política e economia mundial. O cientista lembra que há coisas boas nas redes, que uniram pessoas que de outra forma jamais se encontrari­am.

Mas conclui que, enquanto a busca automática por maior engajament­o estiver no cerne dos algoritmos, o preço que estamos pagando é alto demais. Apesar de o cadastro nesses serviços ser de graça. de quem se divertia. “Levemente maquiado”, abafava sua emoção. Já Chloé entrou no “ninho de notáveis” com o ar rebelde e irônico de quem demarca o território.

Lançon percebeu que o presidente, à vontade, observava a empertigad­a Chloé com a moral relaxada e principesc­a de um Philippe d’Orléans. Semanas depois, Joffrin lhe contou: “Hollande ficou vidrado na cirurgiã, outro dia mesmo falou dela”.

O tempo correu e ele foi a uma cerimônia no Eliseu. Hollande se aproximou sorrindo: “Ah, parece que você está melhor. E a sua cirurgiã, a vê sempre?”. O jornalista teve ganas de dizer que seria melhor não ter sido baleado, não ter de ver Chloé.

Mas respondeu que via a médica amiúde. O presidente: “Que bom! Você tem sorte!”. O jornalista contou o caso a amigos. Muitos reagiram com indignação: Hollande comprovava ser frívolo e leviano. Não tinha nada melhor a dizer à vítima de um atentado?

As reflexões de Lançon são nuançadas. Acha que os jovens julgam tudo e todos. Os velhos, a mesma coisa. Entre as duas idades haveria um tempo no qual não precisaria­m julgar: só levariam a sério a miséria para valer, a sua e a dos outros. Aproveitar­iam a vida.

“Mas aí, em vez de se divertir, as pessoas estão fazendo carreira ou marcando passo”, diz. Ao se lembrar dos olhos faiscantes de Hollande quando vê Chloé, Lançon escreve: “O melhor da vida é não esquecer o que nos agradou, mesmo que por um instante, e, se possível, esquecer o resto”.

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