Busca por netos leva Avós da Argentina a avanços na genética
Ativistas localizam 128 filhos de desaparecidos durante a última ditadura militar na Argentina
Ativistas da Praça de Maio localizaram 128 filhos de desaparecidos na última ditadura militar argentina e levaram à condenação mais de 50 apropriadores de bebês.
Ignacio de Carlotto nunca tinha visto seu país, a Argentina, se unir em comoção até receber o resultado do exame de DNA que provava que ele nascera Guido, filho de Laura, militante morta pela repressão na última ditadura militar (1976-1983) no país.
“O país inteiro chorou de emoção, foi como se de repente não houvesse divisões na Argentina, algo que eu nunca tinha visto”, disse ele à Folha.
O músico tímido criado em Olavarría, província de Buenos Aires, buscou as Avós da Praça de Maio em 2014 após ser informado que o casal de agricultores que tinha como pais biológicos o adotara.
Ele não imaginava, porém, que o exame genético desenvolvido pelo grupo para provar o parentesco entre netos e avós revelaria que ele era o neto desaparecido da líder da entidade, Estela de Carlotto.
Estela, que hoje tem 88 anos e dirige as Avós desde a criação, em 1977, já pensava que a busca de 36 anos pelo filho da filha desaparecida fora vã.
Mas o saldo extrapola o encontro de Estela e Ignácio.
Em seus 41 anos, as Avós localizaram 128 netos e levaram à condenação mais de 50 apropriadores de bebês —crianças tiradas de militantes presos pela ditadura e entregues para outras famílias.
Conquistaram a admiração dos dois lados do espectro político e o reconhecimento internacional pelou trabalho.
Mais do que resgatar a identidade desses indivíduos, a busca das Avós forçou a ciência e a Justiça a se reformarem.
As buscas começaram de modo amador e aleatório, com visitas a escolas e orfanatos com fotos dos pais para ver se alguma criança se parecia com eles, e pedidos à Justiça para que investigasse alguma suspeita. Mas o método era lento e pouco eficiente.
Recorreram, então, à geneticista norte-americana MaryClaire King, a quem perguntaram se era possível fazer exames de DNA para determinar se uma pessoa era neta de outra. A resposta que foi “sim”.
“Mas isso nunca foi tentado, seria necessário estabelecer uma nova fórmula científica”, ouviram de King.
Com um grupo de pesquisadores argentinos e norteamericanos, conseguiram o que hoje é chamado de “índice de abuelidad” —uma fórmula que permite que, apenas com o material genético de avós e netos, e sem o dos pais, se possa estabelecer o parentesco entre as pessoas.
“As Mães da Praça de Maio são símbolo importante na luta pelos direitos humanos na Argentina, mas as Avós foram mais longe nos resultados concretos”, disse à Folha Santiago Canton, secretário de direitos humanos da província de Buenos Aires, que liderou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e foi assistente do ex-presidente americano Jimmy Carter.
Para Canton, elas conseguiram “inovar na busca por crianças retiradas à força de seus pais e por ter como objetivo o futuro das pessoas cuja identidade foi roubada”.
Houve avanço também nos tribunais. “Após a redemocratização, a Justiça passou a aceitar os testes positivos do ‘índice de abuelidad’ para levar adiante investigações sobre como e quando tal pessoa tinha sido sequestrada”, diz.
Estima-se que durante a ditadura argentina cerca de 500 bebês tenham sido tirados das mães, militantes presas, que foram mantidas vivas até parir e logo depois assassinadas.
A princípio, segundo os repressores revelaram nos julgamentos, a solução era considerada mais apropriada para eles, que não queriam matar bebês e acreditavam que mandá-los a outras famílias faria com que não crescessem “desajustados” como os pais.
Com o tempo, a atividade tornou-se sistematizada, como disse antes de morrer, em entrevista ao jornalista Ceferino Reato, o ditador Jorge Rafael Videla (1925-2013), condenado e preso, entre outras coisas, pelo roubo de bebês.
Centros clandestinos de detenção passaram a contar com médicos obstetras e registros das mulheres grávidas, assim como as características dos bebês recém-nascidos, para facilitar a escolha das famílias a que seriam entregues.
As Avós nasceram com mais discrição do que outro grupo surgido no mesmo ano, as Mães da Praça de Maio, que, após buscarem seus filhos em prisões, hospitais e delegacias, passaram a marchar na praça que dá lhes nome, levando um pano branco amarrado à cabeça e fotos dos filhos penduradas no peito.
As Mães, que ainda marcham todas as quintas-feiras, foram as primeiras a dar projeção internacional ao desaparecimento do que se estimam ser 21 mil pessoas, segundo documentos revelados recentemente, mortas em centros clandestinos ou atiradas no rio da Prata ou no mar.
A maioria dos desaparecidos militava em organizações de combate ao regime como as guerrilhas montoneros e ERP (Exército Revolucionário do Povo), mas havia também os de agrupações pacíficas.
Os testes desenvolvidos a pedido das avós hoje detectam parentesco entre primos e outros familiares mais distantes, já que o grupo original escasseia —há apenas quatro das integrantes originais vivas.
E há os sobressaltos. “No governo kirchnerista (200315), os investimentos do Estado e o mecanismo de Justiça para a restituição de identidades, investigação de certidões de nascimento falsas, confecção de novos documentos e processos contra apropriadores de bebês eram mais rápidos. Agora, há demora em todas as etapas.”
Segundo o advogado da entidade, Alan Lud, o que a ONG mais teme nesse momento é um já anunciado corte do repasse anual dado pelo governo, que é garantido por lei, mas pode ser reduzido por causa dos ajustes do Orçamento para 2019 que foi aprovado no Congresso sob a luz o acordo da Argentina com o FMI. No caso das Abuelas, esse corte deve ser de 40% em relação à verba do ano passado.
“Isso vai ser muito sentido, pois mantemos aqui laboratórios do banco genético de todos os que forneceram DNA para buscar parentes, e temos de pagar advogados e psicólogos que atendem as famílias”, disse Lud à Folha.
A entidade prepara também sua renovação. Uma geração formada por ativistas e netos recuperados está sendo preparada para assumir. “Sim, vamos pensar na renovação”, diz Estela de Carlotto. “Mas enquanto ainda houver uma só avó viva, ainda mandam as avós.”
Seus pais biológicos, Inés Ortega e Leonardo Rubén Fossati, ficaram presos ali por seis meses em 1977. Inés tinha 17 anos quando Leonardo nasceu. Depois, nunca mais se soube do casal. “Eu os estou buscando até hoje, mas não há rastros de onde podem ter sido levados”, diz.
Fossa ti cresceu coma família adotiva apoucas quadras desse posto policial. Fala dos pais de criação com carinho e crê que foi adotado de boa-fé, ou seja, que eles acreditaram que Leonardo era um bebê abandonado pela mãe, e não um filho de presos políticos.
Deram a ele o nome de Carlos. “As dúvidas sobre minha identidade sempre existiram. Primeiro, porque via que meus pais eram muito mais velhos que os dos meus colegas de escola. Depois, isso ficou mais forte quando eu mesmo fui pai, aos 19 anos, e senti uma urgência em investigar de onde tinha vindo.”
Quando perguntou aseus pais de criação, eles admitiram que o tinham adotado. Mesmo assim, a relação com um sequestro político parecia distante para todos. “Eles não eram o protótipo de família escolhida pelos militares para entregar bebês. Eram simpatizantes da União Cívica Radical (UCR), ou seja, não eram conservadores, comemoraram a volta da democracia.”
Foi então que uma amiga de um grupo de teatro que ele frequentava, vendo o colega angustiado, disse: “Por que você não procura as Avós[ da Praça de Maio ]?”. Elá foi ele, em 2005. “Fiz o teste, fiquei um pouco ansioso nos primeiros meses, mas demorou tanto para sair o resultado que quase esqueci”, lembra.
“Um dia, veio um oficial à minha casa notificar que eu deveria irà delegacia, e pensei que tinha alguma coisa erra dacoma documentação de uma moto que tinha comprado, nem imaginei que pudesse ser isso”, conta, rindo.
“Depois vieram [a líder da entidade] Estela de Carlotto, me entregaram documentos, falei com meus pais adotivos. Foi um dia imenso. Não sabia o que fazer com tanta informação nova. Estava confuso. Liguei para um amigo dizendo que precisava tomar umas.”
Ele vai contando a história enquanto caminhamos pelo calabouço, mal iluminado e em péssimo estado. “Demorei muito tempo até querer entrar aqui. Hoje sinto que tenho uma dívida com esse lugar, com essa história.”
Fossati é hoje o responsável pela sede das Avós em La Plata e, portanto, quem comanda a transformação do temido centro clandestino em museu. É por isso que ele tema chave do cadeado do lugar em que seus pais ficaram encerrados.
As celas pequenas não têm luz. O ar parece irrespirável, abafado. “Como estamos no pátio da delegacia, quem entrava ali para prestar uma queixa ou fazer um trâmite não imaginava que tinha tanta gente encerrada aqui atrás, da rua não pra ver nada”, afirma.
Ele conta que retomar contatos e conhecer toda a sua verdadeira família é um processo que tem gratificações, mas não é fácil.
“Os pais dome upai adoeceram depois que ele desapareceu. Eles não suporta ramador, e as doenças os levaram à morte”, explica. “A irmã do meu pai também tinhas e convencido de que eu tinha morrido co meles, e, de repente eu apareço, trago recordações. Sinto quen ãoé fácil, e todos precisam de tempo para ajustar esses afetos.”
P orou trolado, seus avós maternos estavam vivos quando ele reapareceu .“É uma emoção tremenda. E tudo graças ao trabalho das Avós. Devo a elas saber quem de fato e usou ”, diz.
“Ainda há muita gente aí que precisa de ajuda para encontrar sua identidade. Há muito o que se revelar sobre o que ocorreram naqueles anos.”