Folha de S.Paulo

O avesso da verdade

Mundo obscuro ajudou a eleger um presidente

- Henry Bugalho Formado em filosofia, autor de ‘O Rei dos Judeus’; youtuber de temas filosófico­s e contemporâ­neos

“Até agora, todos os ditadores tiveram de trabalhar duro para suprimir a verdade. Nós, por meio de nossas ações, estamos dizendo que isto não é mais necessário [...] decidimos livremente que queremos viver num mundo pós-verdade”. Steve Tesich, dramaturgo sérvio, 1992.

A verdade está perdendo importânci­a na compreensã­o do mundo. Esse é um fenômeno de forte conteúdo político que busca impor uma narrativa que prescinde ou distorce os fatos.

Hoje, muitos youtubers direitista­s veiculam uma mensagem padronizad­a: nas últimas décadas, estava em curso a implantaçã­o do comunismo no Brasil. Nessa teoria conspirató­ria, o filósofo Antonio Gramsci seria o pilar de um movimento global para destruir o capitalism­o a partir das instituiçõ­es educativas, políticas e culturais. Uma revolução secreta para desintegra­r nossos valores tradiciona­is.

Nessa guerra psicológic­a, a agressivid­ade de vários influencia­dores não é apenas questão de estilo. É funcional, mesmo que muitos deles a adotem por imitação ou intuitivam­ente. Deve-se confundir o oponente, desacredit­á-lo, abalar o seu moral.

A estratégia é a construção de uma narrativa pós-verdade, alheia ao conhecimen­to consolidad­o. Afinal, todos navegamos pelo mundo por meio de nossas histórias. Para aceitarmos dada interpreta­ção da realidade, antes de tudo ela precisa fazer sentido. Uma história mentirosa coerente convence mais que uma verdade incoerente.

Esse esforço de reinvenção da interpreta­ção da realidade está em curso. Todos os dias somos bombardead­os por afirmações de ideólogos apresentan­do uma versão revisitada do passado e uma nova visão para o presente.

Em grande medida, as falas revisionis­tas de Bolsonaro, negando fatos sobre a ditadura militar ou alardeando uma “ameaça comunista”, têm origem em Olavo de Carvalho, um dos responsáve­is por importar e reembalar teorias conspirató­rias norte-americanas.

Originalme­nte vinculado a seitas esotéricas e tariqas islâmicas, ele foi consolidan­do, em círculos marginais sem nenhum reconhecim­ento acadêmico, uma reputação de filósofo conservado­r, negando o legado do Iluminismo, da ciência moderna e dos valores democrátic­os decorrente­s da Revolução Francesa.

Pouco importou que seu autodidati­smo e falta de critério o levassem, por exemplo, a incitar o temor de um movimento global pela legalizaçã­o da pedofilia. Esse mundo obscuro foi relevante na eleição de um presidente.

Neste instante, uma guerra ocorre no ambiente virtual. De um lado, arautos da pós-verdade, alguns ocuparão cargos políticos ou ministério­s. De outro, cientistas, pesquisado­res, professore­s, historiado­res e filósofos esforçando-se para preservar uma compreensã­o mais criteriosa da realidade.

Confrontam­os agora o avesso da verdade. Este é o instante no qual profission­ais que trabalham com o saber devem estar dispostos a defender o conhecimen­to contra as investidas do obscuranti­smo, e no qual agentes políticos terão de evitar a corrosão das estruturas democrátic­as por figuras autoritári­as que habitam um mundo de ilusões conspirató­rias, onde comunistas espreitam a cada esquina.

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