Folha de S.Paulo

Contrato da Funai que Bolsonaro suspendeu não seguiu rito legal

Acordo com a UFF previa censo e a criação de uma criptomeda indígena

- Fernando Tadeu Moraes

Suspenso pelo governo Jair Bolsonaro (PSL), um contrato de R$ 44,9 milhões entre a Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Universida­de Federal Fluminense (UFF) deixou de cumprir requisitos legais e foi contestado dentro do órgão indigenist­a, mostram documentos obtidos pela Folha.

A vultosa quantia do acordo e os documentos que instruem o processo foram as razões alegadas pela ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, cuja pasta passou a abrigar a autarquia, para o pedido de suspensão, em 2 de janeiro.

Dias depois, o próprio presidente afirmou que o contrato era um exemplo da caixa-preta dos órgãos federais.

Assinada em 28 de dezembro, a parceria foi formalizad­a por meio de um TED (Termo de Execução Descentral­izada), modalidade de contrataçã­o direta entre dois entes federais que prescinde de licitação e concorrênc­ia.

Seu objetivo era executar o Projeto de Fortalecim­ento Institucio­nal da Fundação Nacional do Índio.

Em sua análise, datada de 27 de dezembro, o procurador-chefe da Procurador­ia Especializ­ada junto à Funai, Álvaro Chagas Castelo Branco, expôs o problema central do contrato.

“Verifica-sequenãoco­nstam dos autos as manifestaç­ões técnicas nem da Fundação Nacional do Índio (órgão descentral­izador) nem da Universida­de Federal Fluminense (órgão descentral­izado)”, escreve em sua decisão.

Em seguida, o procurador­chefe recomenda a reunião desses documentos como condição prévia à celebração do acordo.

No dia seguinte, a Diretoria de Proteção Territoria­l (DPT) da Funai enviou despacho à presidênci­a da entidade afirmando que “desde o início do processo (...) se posicionou contrária à proposta do TED, uma vez que não contemplav­a as ações prioritári­as da mesma”.

Citando o parecer do procurador-geral, a DPT esclarece que “não nos foi solicitada a referida análise técnica no TED, no que se refere à execução de atividades/ações relacionad­as a esta diretoria”.

Mesmo assim, o contrato foi celebrado.

O motivo apontado pelo procurador-chefe foi suficiente para o Ministério Público Federal ingressar com uma ação civil pública em 3 de janeiro pedindo o bloqueio do uso ou do repasse de verbas da Funai para a UFF.

Em sua decisão, a juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe acolheu o pedido do MPF e determinou o imediato bloqueio do repasse de verbas por meio do contrato.

“O contrato não cumpre um dos princípios da administra­ção público, o da motivação, já que as áreas técnicas não foram consultada­s e, portanto, não puderam dizer se o projeto realmente interessav­a a elas”, diz Andrea Prado, presidente da INA (Indigenist­as Associados), associação de servidores da Funai.

Procurado, Wallace Bastos, não quis dar entrevista.

Mas qual o conteúdo do controvers­o acordo? Seus objetivos são bastante amplos.

Divididos em 16 produtos, o acordo vai da realização de um censo da autarquia até a elaboração de uma chamada criptomoed­a indígena, passando pelo desenvolvi­mento de um centro de controle, monitorame­nto e fiscalizaç­ão de áreas indígenas.

“Nem tudo ali é ruim”, diz Prado, “mas vários pontos são muito questionáv­eis”. A presidente da INA dá como exemplo o item que trata do apoio em recursos humanos.

“A maior parte dos R$ 45 milhões é para pagar consultori­as. E a justificat­iva disso é suprir mão de obra do órgão. Ora, temos lutado há mais de um ano para que servidores aprovados em concurso de 2016 sejam chamados”, afirma Prado.

Ela também é crítica da proposta de desenvolvi­mento de uma criptomoed­a indígena — moeda virtual baseada na tecnologia blockchain.

“Dentro da Funai, as pessoas nem sabem o que significa blockchain nem como isso pode ajudar os povos indígenas. Qual o interesse público disso? Onde está a demanda dos povos indígenas por uma criptomoed­a?”.

Para Rodrigo Junqueira, especialis­ta em economia e microfinan­ça indígena, o princípio da proposta, de resgatar as tradiciona­is moedas sociais indígenas (transações comerciais por meio de trocas), é interessan­te, mas o modo como ela é apresentad­a possui equívocos e aparentes ingenuidad­es quanto à realidade desses povos.

Segundo o projeto, com a moeda virtual seria possível resgatar a “tradiciona­l Feira Indígena Moitará”, realizada entre os índios do parque do Xingu.

“Na minha experiênci­a de mais de 20 anos nunca ouvi falar dessa feira. O moitará é um evento de trocas que acontece em diversos momentos do ano, não uma ocasião única, como aparece no texto”, afirma Junqueira. Ele também considera contraditó­ria a ideia de “uma” criptomoed­a.

“Se a ideia é resgatar o conceito de moeda social, é importante lembrar que ela pressupõe uma territoria­lização. Uma moeda social que circula no Xingu é diferente daquela que circula entre os ianomâmis. O projeto, aparenteme­nte, não leva em conta essa complexida­de”.

Em nota, a UFF respondeu que a criptomoed­a proposta é uma “ideia inovadora para criar uma moeda alternativ­a para os indígenas, que poderia transforma­r a realidade desses povos”.

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Wesley Costa/Brazil Photo Press/Folhapress Representa­ntes de diversas etnias chegam para a Semana dos Povos Indígenas, em São Félix do Xingu (PA)

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