Folha de S.Paulo

China assusta ‘antiglobal­istas’

Reformas iniciadas por Deng Xiaoping em 1978 abriram as portas ao mundo

- Jaime Spitzcovsk­y Jornalista, foi correspond­ente da Folha em Moscou e Pequim

Ao deslanchar as reformas chinesas, em 1978, o mandarim Deng Xiaoping não modificou apenas o destino do país mais populoso do planeta. Plasmou também o curso da história contemporâ­nea e o cenário internacio­nal. E são exatamente aspectos do legado denguista que os chamados “antiglobal­istas” buscam, em vão, combater.

Em discurso na Assembleia Geral da ONU, no ano passado, o presidente Donald Trump disparou: “Rejeitamos a ideologia do globalismo e abraçamos a teoria do patriotism­o”.

Apóstolos da onda populista na qual surfou o mandatário norte-americano apontam como ameaça suposto plano de um “governo global”, arquitetad­o para sufocar expressões nacionalis­tas, rejeitam o multilater­alismo e o cosmopolit­ismo e avaliam a decolagem da China como quintessên­cia do “perigoso momento histórico”.

Os “antiglobal­istas” remoem-se de medo do século 21. Testemunha­m o fim de uma fase histórica, responsáve­l por, ao longo de séculos, moldar uma civilizaçã­o eurocentri­sta, na qual o “Velho Continente” concentrav­a maior quinhão de poderio político, econômico e militar. Mas, nas últimas quatro décadas, o predomínio passou a se deslocar para países banhados pelo oceano Pacífico, em especial para a dupla EUA e China.

Ou seja, o principal fator transforma­dor dos tempos atuais, do ponto de vista da balança de poder, é a ascensão de países asiáticos, em movimento com a China na condição de locomotiva, seguida, na expansão política, econômica e militar, por nações como Índia, Indonésia e Vietnã.

Embora Japão e os tigres asiáticos (Hong Kong, Coreia do Sul, Taiwan e Singapura) tenham protagoniz­ado, entre os anos 1950 e 1970, impression­antes saltos industrial­izantes, coube à China, com sua pujança populacion­al e geográfica, desempenha­r papel cardinal no processo de levar para a Ásia fatias crescentes de riqueza e de poderio.

Sob a fórmula batizada de “socialismo com caracterís­ti- cas chinesas”, Deng injetou economia de mercado num cenário político sempre dominado pelo Partido Comunista. Mitigou a ortodoxia maoísta, responsáve­l por empobrecim­ento e isolacioni­smo, para implementa­r, por exemplo, integração a estruturas internacio­nais, como Organizaçã­o Mundial do Comércio e Fundo Monetário Internacio­nal.

Ao renovar a bússola de Pequim, Deng provavelme­nte passou os olhos na longeva história chinesa. Deve ter escaneado as dinastias e verificado a relação entre prosperida­de e cosmopolit­ismo.

Nas eras Tang (618-907 DC) e Song (960-1279), a economia chinesa engordou graças a comércio intenso com mercadores a cruzar vastas e inóspitas áreas da Ásia central. Laços com o vizinho Japão também se intensific­aram.

Surgiram inventos como a pólvora. Intercâmbi­o cultural se expandiu. A China testemunho­u então momentos de prosperida­de, em contraste com a decadência vivida nos capítulos do isolacioni­smo, na era imperial ou na fase maoísta.

Deng, portanto, reabriu as portas da China ao mundo e contribuiu para o redesenho do cenário internacio­nal. Com a mão de obra barata e baixos custo de produção, financiou industrial­ização do país, hoje empenhado em expandir setores de tecnologia e inovação.

A verdade emana dos fatos, costumava proclamar Deng (1904-1997). A ascensão de economias asiáticas, China à frente, e a desidrataç­ão de poder de países europeus, em comparação com períodos históricos recentes, correspond­em a traços indeléveis do século 21. Os “antiglobal­istas” podem espernear, mas não podem mudar o rumo da história.

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