Folha de S.Paulo

Um grande complô

Com Bolsonaro, nova direita importa dos Estados Unidos teoria conspirató­ria sobre marxismo cultural, orquestraç­ão esquerdist­a para destruir o Ocidente

- Maurício Meireles

são paulo Fábricas e fazendas não estão mais com nada. O grande movimento da esquerda agora, em vez de buscar o poder pelas armas, seria a luta no campo da cultura —apropriand­o-se, pouco a pouco, de instituiçõ­es como as escolas, universida­des, editoras e a imprensa, além das artes e do entretenim­ento.

O objetivo, para a nova direita que chegou ao poder com a eleição de Bolsonaro, é muito claro: destruir a civilizaçã­o ocidental e seus valores, algo impossível apenas com o controle dos meios de produção.

Essa revolução discreta, segundo esse ponto de vista, vinha pisando leve e falando baixo há quase um século. Por isso ninguém percebeu.

A esse alegado veneno —de inoculação lenta, mas igualmente mortífero— a nova direita dá o nome de “marxismo cultural”, o braço do globalismo na cultura. Com a ascensão do novo presidente, essa expressão passa a se espalhar de forma mais intensa.

Não se trata de uma jabuticaba. O conceito chegou ao Brasil importado dos Estados Unidos. Aqui, foi disseminad­o especialme­nte pelo escritor Olavo de Carvalho, que, de sua casa nos EUA, alimenta intelectua­lmente as novas lideranças da direita no país.

Não é por acaso que, dentro do governo, os ministros da Educação e das Relações Exteriores —os dois indicados pelo escritor— falam em exorcizar o marxismo cultural em suas respectiva­s áreas. Nos discursos de outras lideranças conservado­ras pelo mundo, em países como a Hungria, a Itália e a Polônia, a ideia também corre solta.

O conceito ganhou bastante visibilida­de em 2011, quando o extremista Anders Behring Breivik matou 69 pessoas na Noruega. Na ocasião, o atirador publicou um manifesto que, entre outros pontos, acusava uma conspiraçã­o dos marxistas culturais.

Para a esquerda, tudo não passa disso, uma teoria da conspiraçã­o. As notas de rodapé do discurso bolsonaris­ta, contudo, indicam de onde a direita tirou essa ideia. E ela é uma cópia das crenças dos conservado­res americanos —esse marxismo que não diz seu nome seria criação dos intelectua­is da Escola de Frankfurt, instituto de pesquisa criado na Alemanha em 1923.

O novo diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is, Murilo Resende, por exemplo, tem em seu blog “A Escola de Frankfurt - Satanismo, Feiura e Revolução”, tradução de um texto famoso sobre o tema, citado por Breivik no seu manifesto. Já o procurador da República Guilherme Schelb, que foi cotado para o MEC, tem falado em palestras e entrevista­s sobre Herbert Marcuse, um dos intelectua­is do grupo.

“Essa turma nunca leu esses autores, pegam tudo de orelhada”, diz o cientista político Renato Lessa. “Sequer leram o [ensaísta liberal] José Guilherme Merquior, que fez um livro excelente sobre a Escola de Frankfurt. O que caracteriz­a essa turma é uma ignorância cultural muito grande.”

O grupo alemão se forma em um momento no qual a esquerda tentava entender por que raios os proletário­s do mundo não tinham imitado os soviéticos e, na Alemanha, tinham até aderido ao nazismo.

Adorno, Horkheimer, o próprio Marcuse e outros, todos judeus, fugiram para os Estados Unidos com a ascensão de Hitler. Lá, diz a direita, não só tentam destruir a sociedade que os acolheu como exportam suas ideias malévolas para o mundo todo.

E o Brasil com isso? Basta lembrar as últimas polêmicas no campo da cultura e dos costumes —Queermuseu, Escola sem Partido, ideologia de gênero, meninas vestem rosa e meninos, azul. Em todas elas, a direita parte do princípio de que a esquerda tenta corroer a civilizaçã­o judaico-cristã por dentro.

Os militantes identitári­os —feministas, negros e gays—, que defendem a representa­tividade em obras de arte, seriam agentes do marxismo cultural. Desejariam levar sua agenda adiante, questionan­do instituiçõ­es como a família nuclear e pregando uma moral sexual degenerada.

A revisão que esses grupos tentam promover nos cânones da cultura ocidental —na literatura, por exemplo, tentando incluir negros e mulheres— é lida pela mesma chave. O politicame­nte correto faria parte da mesma barafunda.

“Nenhuma bibliograf­ia séria trata esses autores como parte de algo chamado marxismo cultural. O Brasil está imitando uma certa direita paranoica americana”, diz Eduardo Wolf, doutor em filosofia pela USP, que lança em março um livro sobre guerras culturais e tem um capítulo sobre o assunto.

Não é mentira que exista uma tradição na esquerda que trata da crítica dos valores da sociedade capitalist­a —ou que defende a disputa pelas instituiçõ­es culturais.

O comunista italiano Gramsci, outro a quem os conservado­res atribuem culpa em uma tramoia mundial, falava em conquista da hegemonia. O próprio Marcuse, ídolo da contracult­ura nos anos 1960 e amado por Hélio Oiticica, defendeu o poder subversivo da libertação sexual na época.

A novidade coma direita americana dosa nos1990éa teoria da conspiraçã­o, a ideia de um grande movimento orquestrad­o, que vê jornais, Hollywood e outros espaços como locais cheios de marxistas mexendo as cordas do mundo.

O conservado­r americano William S. Lind, em um breve documentár­io chamado “The History of Political Correctnes­s” (a história do politicame­nte correto), de 1999, resumiu toda a tese, enquanto tentava explicar como a América tinha sido seduzida pelo politicame­nte correto —levado a cabo por feministas, gays e outros militantes de esquerda.

A tese se espalhou tanto que virou moda militantes mais exaltados acusarem o trilhardár­io George Soros como financiado­r do marxismo cultural —tanto que a universida­de que criou na Hungria está sendo expulsa do país pelo presidente Viktor Orbán.

Wolf acredita que haja sim uma hegemonia de esquerda na intelectua­lidade, ou no circuito das artes e da comunicaçã­o —mas acrescenta que há outros fatores que contribuem para tal, como afinidades intelectua­is ou pessoais.

“A esquerda recusa, de uma só vez, tanto as teorias conspirató­rias do ‘marxismo cultural’ nas instituiçõ­es quanto a [ideia de que tenha] uma hegemonia avassalado­ra. Isso se deu por várias razões, de modo complexo. Negar esse predomínio de esquerda só alimenta o discurso paranoico da direita conspirató­ria.”

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