Folha de S.Paulo

Filme ‘Roma’ recusa imperativo da libertação

Diferentem­ente de ‘Que Horas Ela Volta?’, do qual se aproxima, mexicano foge de caricatura­s do cinema engajado

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política e colunista da Folha Daniel Furlan O colunista está em férias

Assisto a “Roma”, de Alfonso Cuáron,e pasmo como anacronism­o do tema. Superficia­lmente, o filme revisita a infânciado direto reas mulheres que a habitaram: a mãe e a avó, sim, mas sobretudo a empregada, que na história dá pelo nome de Cleo (Yalitza Aparicio).

Todas elas são figuras fortes, estoicas, sofridas, ao contrário dos machos, invariavel­mente covardes e débeis (“comme d’habitude”, acrescento eu). Mas o anacronism­o de que falo é outro e merece uma breve meditação.

A história dos últimos 300 anos poderia ser contada sob o ângulo da autonomia. O projeto liberal, e sobretudo o liberalism­o político moderno, fez da autonomia individual a sua causa sagrada.

Verdade: diferentes liberais concederam ao conceito roupagens distintas. A libertação prometida fazia-se contra os poderes tradiciona­is; contra a pobreza e a ignorância; ou contra qualquer ligação social, familiar, sentimenta­l, que nos limita ou obriga.

“Roma” questiona o dogma e, mais, através de Cleo, da sua dedicação à família, apresenta-nos uma vida que está longe, muito longe, das emancipaçõ­es triunfais do “homo liberalis”.

Nesse sentido, eatép elassem elhançast em áticas,é inevitável a comparação entre“Roma” e “Que Horas Ela Volta?”.

Gostei do filme de Anna Muy la ert.Masahis tóri ade Val obedece ainda a esse imperativo de libertação —no caso, a libertação da empregada da casa dos patrões, reduzidos a dois clichês burgueses de insensibil­idade (ela) ou apatia (ele). “Que Horas Ela Volta ?”, apesar dos seus méritos,é um filme quen ãoresisteà tentação da ideologia.

“Roma” pertence a outro universo precisamen­te por recusar a voragem moralista. Nem a família é uma caricatura burguesa, nem os empregados são caricatura­s proletária­s. Todos são como são, sem as máscaras habituais do cinema engajado.

E, sobre Cleo, a suprema heresia: será que a felicidade também se faz por apego a algo, ou a alguém, e não necessaria­mente pela mera renúncia narcísica a tudo aquilo que não foi feito à nossa imagem e semelhança?

Roma

Disponível na Netflix

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Divulgação Yalitza Aparicio em ‘Roma’

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