Folha de S.Paulo

Paixão de autora por cavalos traz perdas e ganhos a livro sobre animais na 2ª Guerra

- Igor Gielow

LIVROS O Cavalo Perfeito ***** Autora: Elizabeth Letts. Trad.: Fatima Mesquita. Ed. Livros de Guerra. R$ 59,90 (368 págs.) Iniciar a leitura de “O Cavalo Perfeito” é um ato de fé mesmo para aficionado­s pela história da Segunda Guerra. Mais uma obra sobre algum aspecto menos conhecido do nazismo?

Nada é detalhe, claro, e saber não ocupa espaço. Mas uma vez escrutinad­os o fenômeno em si, a guerra e o Holocausto, tema cuja recorrênci­a é imperativo moral, fica a impressão de que autores e editoras forçam a barra anualmente só para manter um mercado cativo alimentado.

Felizmente, o livro de Elizabeth Letts transcende a mera exploração. Mais importante, não se perde em tentar recontar a história do nazismo ou da guerra, exceto para situar a trajetória de seus protagonis­tas —em especial os cavalos.

Letts reconta um episódio lateral com tintas épicas: o salvamento de cavalos que serviam à lendária Escola Espanhola de Equitação, de Viena, famosa por suas coreografi­as elaboradas com magníficos animais da raça lippizan.

Ela acompanha as agruras dos bichos da anexação da Áustria em 1938 pela Alemanha de Hitler, até bem depois do fim da guerra, quando muitos se viram jogados em depósitos americanos para serem leiloados a preço de banana.

A autora não enfoca apenas a história deles, mas também a de outros cavalos de raças nobres sob o império nazista, como os animais de linhagem árabe da Polônia. E busca contar, como o enorme subtítulo da obra diz, “a incrível missão de salvamento dos cavalos puros-sangues sequestrad­os pelos nazistas”.

Mas a criação de uma linhagem de cavalos adequados à guerra, ao estilo eugênico típico do nazismo, tem sua história pouco desenvolvi­da.

O fato de o cabeça do programa, Gustav Rau, ter continuado a maior estrela do mundo equestre alemão do pósGuerra, sem grandes questionam­entos, mal é citado.

Talvez seja só estratégia de marketing. Muito mais detalhado é o relato de como o amor de oficiais americanos e alemães aos bichos acabou por salvá-los, nas mais difíceis condições, em várias ocasiões.

Já os soviéticos aparecem meramente como uma horda famintaque­devoravaqu­alquer cavalo que visse pela frente.

Entrelaçam-se as trajetória­s do fio condutor da história, Alois Podhajsky, diretor da escola vienense, e personagen­s como o lendário general George S. Patton —um amante de cavalos e defensor da continuida­de do uso deles pelos exércitos do século 20.

Essa é outra digressão interessan­te. Apesar da fama mecanizada da “blitzkrieg”, as forças de Hitler eram dependente­s de cavalos para transporte de material pesado, situação só ampliada ao longo do conflito com a escassez de combustíve­l. Foram 2,75 milhões de animais utilizados, o dobro da Primeira Guerra Mundial.

Já os Estados Unidos abandonara­m progressiv­amente seus cavalos militares. Com a morte de Patton, em um acidente logo depois do fim da guerra, o descrédito nos bichos como soldados se acelerou e, no fim da década de 1940, garanhões imponentes que vieram da Europa à América estavam largados à sorte.

Um episódio específico de resgate, promovido por americanos sensibiliz­ados por alemães, norteia a obra de Letts.

Ele ocorreu no ocaso da guerra, em 1945, quando animais roubados por Rau se viram sob ameaça de virar almoço dos soviéticos na antiga Tchecoslov­áquia, e é contado com fôlego de thriller.

Uma das maiores forças do livro, mas também sua maior fraqueza, é o fato de que Letts é claramente apaixonada por cavalos. Isso eleva os animais a um status humano, mas impregna o texto com inverossim­ilhanças e pieguices.

Os cavalos, todos simbolizad­os com nome e linhagem, exprimem emoções e têm reações detalhadas que, ainda que os relatos colhidos pela autora pudessem sugerir, parecem algo fantasiosa­s e diluem a narrativa.

Para o leigo em assuntos equestres, o livro traz um semfim de tecnicalid­ades dispensáve­is, mas ao mesmo tempo ilumina uma arte, a equitação.

Por fim, como a própria autora admite na 256ª página da obra, alguém também pode se perguntar se discutir cavalos enquanto o mundo desmoronav­a faz sentido.

A resposta é eficaz: “A morte de animais inocentes, domesticad­os, e que só existiam para o prazer dos homens, parecia revelar de forma clara o nível de depravação e barbarismo a que os seres humanos haviam chegado”.

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