Folha de S.Paulo

Peça ressalta o assombro diante de barbárie

‘Democracia’, espetáculo de Felipe Hirsch, é baseado em livro de Alejandro Zambra e faz parte da programaçã­o da MITsp

- Paulo Bio Toledo

Com “Democracia”, Felipe Hirsch buscou transpor para o palco o instigante livro “Facsímil”, de Alejandro Zambra.

O escritor chileno criou uma obra que reproduz em sua forma o exame de admissão nas universida­des do Chile. O teste vigorou de 1967 a 2002.

No livro, o resultado é uma estrutura ao mesmo tempo irônica, melancólic­a e fascinante. Cria-se um efeito de estranhame­nto que convida a uma atitude ativa do leitor. Somos obrigados a retornar ao que já lemos, duvidar de sentidos que se contradize­m, refazer percursos.

Narrativas, sentenças e mesmo o significad­o das palavras oscilam como num pêndulo. Tudo é e não é, ainda que a forma mimetize o saber exato de testes de múltipla escolha.

Mas parte da força literária que Zambra criou para enfrentar a realidade do Chile é diluída nesta transposiç­ão de linguagem para o teatro.

A encenação de Hirsch cria um ambiente de confinamen­to, no qual cinco competidor­es participam de uma espécie de jogo absurdo. O espetáculo está em cartaz no Teatro Faap durante a MITsp Mostra Internacio­nal de Teatro de São Paulo.

Os atores respondem perguntas como se fossem ratos em um laboratóri­o. A forma provocativ­a e experiment­al da obra do escritor se transforma numa imagem congelada e repetitiva de seres presos numa vida sem sentido, batalhando pelo que não se explica.

Porém, ao mesmo tempo, o grupo apresenta uma discussão de alta densidade crítica a partir do livro. A cenografia desenvolvi­da por Daniela Thomas e Felipe Tessara cria um letreiro que ocupa o fundo do palco com a palavra “democracia” em vermelho.

A proposta traz a ideia genérica de democracia —o bom paradigma de qualquer reflexão política hoje—, só que conjugada ao hipnótico mundo de letreiros luminosos, show business e mercadoria.

O cenário espelha o tratamento ambivalent­e dado ao conceito democracia ao longo da montagem. Em cena, os atores movem-se de maneira frenética e repetitiva, representa­m seres que competem de forma irracional até a exaustão, em busca de algo que não se sabe o quê.

“O Chile é uma grande sala de espera”, diz uma das mulheres. Das narrativas e frases soltas emanam perguntas: superamos mesmo nosso passado? Qual caminho tomamos? É um avanço ou só uma nova roupagem da mesma vida extenuante, solitária e opressiva em que vivemos?

Se, por um lado, a monótona situação paralisada é um problema da transposiç­ão da literatura para o teatro, por outro ela ressalta a angústia e o assombro diante de uma democracia que produz barbárie.

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Pamela Albarracin/Divulgação Cena da peça ‘Democracia’

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