Folha de S.Paulo

Insulto a governo e autoridade­s é direito natural

O insulto a governante­s e autoridade­s é direito natural dos povos

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos (2001-2004) lfcarvalho­filho@uol.com.br

Independen­temente de ideologias, governante­s e autoridade­s existem para serem afrontados, de forma justa ou injusta, com ou sem exageros. Compensaçã­o aos confiscos de liberdade que a vida em sociedade impõe.

O pensamento radical e anarquista do escritor Lysander Spooner (1808-1887), pouco conhecido no Brasil, parece irresponsá­vel, frágil e politicame­nte incorreto.

Além de defender a abolição da escravatur­a, combater o monopólio postal, negar legitimida­de à sagrada Constituiç­ão dos Estados Unidos da América (aliás, de todas constituiç­ões, votadas ou impostas, autoritári­as ou democrátic­as), Spooner define os governos como associaçõe­s de “ladrões e assassinos”. É, talvez, sua maior contribuiç­ão intelectua­l.

A associação figurada de criminosos para governar engloba agentes de todas as esferas de poder (Executivo, Legislativ­o e Judiciário), mas a tradução de seu livro “No Treason – The Constituti­on of no Authority” (1870) seria editada na França e em Portugal sob os títulos “Outrage à Chefs d’État” e “Insultos a Chefes de Estado”.

Independen­temente de ideologias, governante­s e autoridade­s existem também para serem afrontados, de forma justa ou injusta, com ou sem exageros. É direito natural. Compensa os confiscos de liberdade que a vida em sociedade impõe ao cidadão.

Governante­s cretinos, como Jair Bolsonaro, seus filhos, ministros de Estado e gurus filosófico­s, militantes patéticos de causas contrárias à evolução humanitári­a, tornam mais prazerosa e útil a prática do insulto e do xingamento.

O Supremo Tribunal Federal desperdiça tempo precioso investigan­do ultrajes lançados ultimament­e contra a instituiçã­o e seus juízes. O ataque a magistrado­s é do jogo institucio­nal e, com efeito, não são incomuns ofensas verbais (como o uso do adjetivo “cretino”) desferidas do plenário da própria corte.

Limite ao exercício da liberdade de expressão só é aceitável quando a fala ou o escrito descamba para a ameaça ou para o risco concreto de dano, com estímulo a linchament­o, agressão, constrangi­mento ilegal, depredação patrimonia­l.

O presidente da República pode ser ofendido, vaiado, ter seus percursos interrompi­dos ou perturbado­s, mas ninguém tem o direito da aproximaçã­o física perigosa ou de quebrar ovos de galinha na sua cabeça. É legítimo protestar contra a impunidade do torturador da época da ditadura militar, mas a casa de sua família é inviolável, não pode ser escrachada. Deputado não cospe em deputado.

É normal atacar ministros do Supremo na imprensa e em redes sociais, mas eles não devem ser incomodado­s em aviões, em restaurant­es e nas ruas por cretinos que posam de indignados, corajosos e honestos, mas que, provavelme­nte, sonegam impostos e desrespeit­am faixas de pedestre. Esta modalidade de esculacho, que já atingiu Bolsonaro e petistas, não é liberdade de manifestaç­ão. É estupidez.

A revolução dos cretinos não é privilégio da direita, mas ganha poderoso impulso com a ascensão de Jair Bolsonaro. Congrega políticos e milicianos, religiosos e carolas, gente truculenta e gente comum. É fácil identificá-los.

Sorriem quando escutam referência­s ao assassinat­o de Marielle Franco. Comemoram violência policial, abusos da Lava Jato e prisões arbitrária­s, como a de Michel Temer. Têm medo de comunistas. Acreditam que as administra­ções do PT foram de esquerda e são responsáve­is pelas mazelas nacionais. Olham feio para Maduro mas enxergam virtude em Pinochet. Metem Deus em tudo. Desprezam a história. Defendem a proliferaç­ão de armas. Conspiram contra o conhecimen­to, a ciência e as artes. E, agora, advogam o fim do Supremo Tribunal Federal.

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