Folha de S.Paulo

Para Paulo entender Olavo

A “revolução” do guru fuzilaria os liberais junto com os comunistas, se pudesse

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

“Por que o líder dispara contra a revolução que inspirou?”, perguntou um inconforma­do Paulo Guedes a Olavo de Carvalho no jantar em homenagem a Bolsonaro, em Washington. Na véspera, o Bruxo da Virgínia atirara um petardo contra Hamilton Mourão, responsabi­lizando-o pela virtual dissolução do governo no horizonte de seis meses. Paulo merece resposta. Ofereço-lhe duas, complement­ares.

A primeira: a “revolução” de Olavo não é a de Paulo, e uma conflita com a outra.

Paulo acalenta a doutrina do liberalism­o econômico radical: o Estado Mínimo. Já Olavo interessa-se apenas marginalme­nte por economia. A “revolução” dele também é um retorno, mas não ao Estado liberal do século 19 e sim a um passado mítico de soberanias estatais absolutas, hierarquia­s patriarcai­s fundadas na tradição e respeito às “liberdades naturais” do colono armado. Numa síntese rápida, a fusão do conservado­rismo romântico europeu com o nativismo individual­ista americano.

Olavo não é original. Logo após a Primeira Guerra Mundial, Oswald Spengler anunciou o “declínio do Ocidente”, fruto de um longo envenename­nto cultural provocado pelas bactérias do Iluminismo. Do nacionalis­mo conservado­r e autoritári­o spengleria­no nasceu essa contrafaçã­o pós-moderna: o mingau “filosófico” servido pelo Bruxo da Virgínia e, de modo geral, pela alt-right (direita nacionalis­ta) americana. Paulo talvez não se interesse por esse labirinto ideológico, mas deveria prestar atenção à sua implicação.

A alt-right difunde a tese de que os “liberais globalista­s” estão associados aos “marxistas” numa conspiraçã­o mundial contra os povos. Nessa aliança fantasiosa, Paulo figura no primeiro grupo. A “revolução” de Olavo fuzilaria os liberais junto com os comunistas, se pudesse.

No dia seguinte ao célebre jantar, Bolsonaro prostrou-se aos pés de Trump. Cito, com autorizaçã­o, a incisão cirúrgica realizada pelo embaixador Marcos Azambuja num debate fechado: “O produto que Bolsonaro tentou vender não tem demanda na Casa Branca. Trump despreza os que o bajulam; ele gosta de Putin e Kim Jong-un, que o confrontam.” Acrescento: a “revolução” de Olavo é uma ideia fora de lugar, a importação de um discurso populista estranho aos dilemas brasileiro­s.

A segunda resposta: a “revolução” de Olavo é uma “revolução permanente”, uma guerra sem fim contra moinhos de vento.

O Bruxo da Virgínia precisa conservar seu estatuto de bruxo —ou seja, a condição de guru de uma seita. Para reter a lealdade total de seus seguidores, deve evitar que eles sejam contaminad­os pelos intercâmbi­os de interesses e conciliaçõ­es políticas inerentes a qualquer governo. Por meio da “revolução permanente”, o líder impede que seus liderados cedam à tentação de oscilar entre os comandos de dois senhores.

Olavo não é tonto como seus “alunos” que colonizam o Itamaraty e o MEC. Ele sabe que clama por uma utopia: a volta dos ponteiros da História a uma Idade de Ouro imaginária. Sabe, portanto, que qualquer governo está destinado ao fracasso, se a medida do sucesso for a régua maximalist­a da sua utopia. O líder que não pretende ser desmascara­do pela inevitável falência de sua “revolução” precisa identifica­r e denunciar, previament­e, os traidores da causa. Daí, o recurso à “revolução permanente”: o líder dispara contra a revolução que inspirou.

A consequênc­ia da “revolução permanente” é a perene ingovernab­ilidade. Sacudido por crônicas guerras intestinas, o governo carece da coesão, da autoridade e da força persuasiva para formar maiorias parlamenta­res sólidas. O projeto da reforma previdenci­ária, ato inaugural da “revolução” de Paulo, corre o risco de ser tragado no vórtice da “revolução” de Olavo.

Há algo mais. Entre os “alunos” do Bruxo da Virgínia, contam-se ao menos dois dos filhos do presidente. A “revolução” de Olavo é a de Jair. Anote isso, Paulo.

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