Livro de Bolaño é uma profética enciclopédia de autores fascistas
‘A Literatura Nazista na América’ viaja ao futuro para retratar triste presente
LIVROS A Literatura Nazista na América Autor: Roberto Bolaño. Ed.: Companhia das Letras, R$ 54,90 (237 págs.)
Jorge Luis Borges deu a letra, no prefácio de “Ficções”. “Desvario trabalhoso e empobrecedor o de compor vastos livros. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e propor um resumo, um comentário.”
Roberto Bolaño, morto aos 50, em 2003, aplicou idêntico alfabetocriativo em “A Literatura Nazista na América”, publicado em 1996, e pelo qual seu trabalho começou a ser notado pelos “happy few” (“or not to many”).
Em partes iguais, o romance episódico trouxe a Bolaño alegrias (breves) e tristezas (longas, inclusive póstumas — aqui apelando ao espiritismo resenhístico): a primeira edição encalhou, e a Seix Barral decidiu picotá-la, “algo que o traumatizou”, segundo seu amigo Jorge Herralde. A segunda edição pela mesma editora veio ilustrada por fotos de Hitler na capa, o que causou processo movido pela viúva do autor, Carolina López, alegando incompreensão editorial frente ao teor satírico do livro.
Alegrias: o livro levou Bolaño à Anagrama, brava editora espanhola sob comando de Herralde que publicaria um novo título do chileno por ano até sua morte precoce.
A parceria começou com a adaptação estendida do último episódio de “A Literatura Nazista”, protagonizado pelo infame Carlos Ramírez Hoffman, que gerou “Estrela Distante”, pequena obra-prima na qual Hoffman se metamorfoseia em Alberto Ruiz-Tagle e depois em Carlos Wieder (é uma história de duplos).
Ao modo de Borges, o procedimento de Bolaño também inverteu o método criado por Marcel Schwob em “Vidas Imaginárias” (1896), no qual os protagonistas são baseados em figuras reais, porém seus feitos são inventados. Em “A Literatura Nazista”, os personagens são fictícios, mas aquilo que fazem —censura, proselitismo, corrupção, perseguições, tortura e até literatura— é duramente real.
Como pitada singular de inventividade, a extração de “Estrela Distante” deu pé ao Big Bang da escrita de Bolaño, a “fractalidade” como a designou o crítico Ignacio Echevarría. Em seguida, a novela “Amuleto” foi igualmente rebento de célula narrativa extraída do romance “Os Detetives Selvagens”, re- sultando num procedimento literário por cissiparidade e pelo reaproveitamento exponencial de enredos.
“A Literatura Nazista” imita enciclopédias, com verbetes biobibliográficos dedicados a escritores fascistas do continente americano. Entre os biografados, apenas Hoffman é cooptado pela ditadura chilena, sendo que os demais se circunscrevem às categorias de lacaios, ermitões ou psicopatas, teóricos e práticos. A maioria é de escritores argentinos e americanos, mas aparecem dois brasileiros, claro.
Amado Couto gostaria de roubar a identidade do conterrâneo Rubem Fonseca, apesar de saber que o juiz-forano “é um filho da puta”. Só consegue ser, além de escritor incompreendido, matador do Esquadrão da Morte (planeja sequestrar Fonseca, mas a chefia o impede, o que o leva a invejar as costas quentes do autor). Sofre internações e acaba se suicidando em Paris.
Assim, o conto soa a rodapé sarcástico à atuação de Fonseca no IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, na articulação que derrubou João Goulart em 1964.
Mais sombrio é Luiz Fontaine da Souza (1900-1977), filósofo católico que refuta praticamente toda a filosofia ocidental: de Voltaire a Hegel, passando por Sartre, percorrendo “dos filósofos pré-socráticos aos filmes de Chaplin e Buster Keaton”.
Seus libelos, seguidos por devotos, expõem os perigos que espreitam o Brasil — desordem, promiscuidade, criminalidade. Sua refutação de “O Ser e o Nada” inclui títulos como “A Segunda Atitude para com o Próximo: a Indiferença, o Desejo, o Ódio, o Sadismo”. Não recorda um proeminente filósofo brasileiro atual? Bem, este aqui acaba no hospício, como Amado Couto, internado pelos próprios familiares.
Profético, “A Literatura Nazista na América” resume as vidas de seus biografados a partir de algum ponto indeterminado do futuro, pois um deles morre em 2029. Assim, é como se narrasse nosso terrível presente. “A América Latina foi o manicômio da Europa”, escreveu Bolaño num ensaio, ”assim como os Estados Unidos foram sua fábrica”.
Os personagens são fictícios, mas aquilo que fazem —censura, corrupção, tortura e até literatura— é duramente real