Folha de S.Paulo

Restaurant­e de shopping representa fracasso da humanidade

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Duas consideraç­ões sobre o lamentável episódio das crianças barradas na exposição do Mickey em um shopping de São Paulo:

1. Baita ideia de jerico da prefeitura de Guaratingu­etá. Premiar alunos carentes com visita ao playground dos ricos paulistano­s é um atestado de falta de noção.

2. Graças ao incidente, as crianças tiveram uma experiênci­a pedagógica preciosa. Saíram de casa para se divertir com o ratinho da Disney e deixaram a inocência nos bueiros da Vila Olímpia. Voltaram para casa cientes de sua posição na sociedade.

Todo shopping center é um mausoléu da civilizaçã­o. O JK Iguatemi, em particular, se parece com uma tumba gigante. Um caixote de pedra branca e corredores frios, onde só falta a inscrição em baixo-relevo para avisar às gerações vindouras: “Gente, deu merda.”

O mais bizarro é que um dos pontos altos da excursão era o lanche na praça de alimentaçã­o. Qual o sentido de viajar 200 quilômetro­s para comer fritura e açúcar embalados no papelão com propaganda infantil?

Comer em shopping deveria ser uma conveniênc­ia. Algo como a barraca de pastel da feira: você foi fazer compras, bateu fome, a comida está ali ao lado... Virou o programa das famílias, casais e grupos de amigos que consideram o mundo aqui fora perigoso demais.

O shopping é um gueto invertido. Para evitar o convívio com os indesejáve­is, a elite se tranca voluntaria­mente em gaiolas de luxo. Abre mão da própria liberdade para não se imiscuir.

O setor da alimentaçã­o percebeu a aversão dos abonados às calçadas, seus pombos e seus pedintes. Cada vez mais restaurant­es abrem em shopping centers.

Jantar neles é uma experiênci­a singular. Você entrega o carro blindado ao valet e caminha por uma galeria que poderia estar em Dubai ou na Flórida.

Aí entra a mágica dos arquitetos: o ambiente do restaurant­e é projetado para dar a ilusão de que não se está num shopping. Um simulacro de restaurant­e de rua, sendo que a rua real está a poucos passos dali. Demencial.

A bolha de brilho e glamour tem suas imperfeiçõ­es. Uma é a lei, que garante o acesso público aos centros de compra. Outra falha é inerente ao capitalism­o: é preciso faturar, e não é mole faturar com um modelo de luxo puro-sangue.

Assim, surgem as praças de alimentaçã­o. Para lá se dirige, na hora do almoço e na happy hour, a massa de recepcioni­stas, secretária­s, contadores, cabeleirei­ros, motoristas, manicures e outros tipos pouco fulgurante­s. Às vezes, vêm até excursões de escolas do interior.

Enquanto os ricos tentam fugir do povão, o povão quer sonhar com coisas que nunca vai poder comprar. Comer batata frita enquanto observa as madames engaiolada­s. Para os pobres, shopping center é um zoológico de gente rica.

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Divulgação Filme “O Confeiteir­o”, de Israel, será exibido na terça (26) no MIS

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