Folha de S.Paulo

Disparam denúncias de tortura em prisões de SP

Osasco tem 66 registros até fevereiro; gestão Doria nega irregulari­dades

- Thaiza Pauluze

Denúncias de tortura em presídios paulistas dispararam em janeiro e fevereiro. Até o dia 12 de fevereiro, 73 foram registrada­s, sendo 66 referentes ao Centro de Detenção Provisória 2, em Osasco, na Grande SP.

Nos últimos dez anos, nenhum presídio teve tantas denúncias na ouvidoria da Secretaria de Administra­ção Penitenciá­ria. A recordista até então era a Penitenciá­ria 1, de Potim, com 20 anotações em 2013.

O total de 73 já é superior à metade do volume de reclamaçõe­s (142) feitas em 2018.

O pico deste ano coincide com a véspera da remoção de líderes do PCC para presídios federais. No período da operação, todas as unidades do estado foram revistadas para tentar inibir eventuais rebeliões. Segundo familiares de presos, com muita violência.

Como no caso de Michael Jachson Araújo da Silva, 33, que não teria recebido assistênci­a em Osasco após agressão e morreu.

Para o secretário Nivaldo Restivo, ex-comandante da PM, as denúncias “não têm procedênci­a”.

As denúncias de tortura em presídios paulistas dispararam em janeiro e fevereiro: foram 73 até o dia 12 do mês passado, mais da metade das reclamaçõe­s (142) de todo o ano de 2018. Desses 73 registros, 66 se referem ao Centro de Detenção Provisória 2, em Osasco, na Grande SP.

Nos últimos dez anos, nenhum presídio teve tantas denúncias na ouvidoria da SAP (Secretaria de Administra­ção Penitenciá­ria), como essa unidade. A com mais queixas em um ano até então era a Penitenciá­ria 1, de Potim (a 195 km de SP), com 20 casos em 2013.

A fila em dias de visita em Osasco começa a se formar às 5h , com mulheres vestindo rosa e vermelho. Cores como preto, branco, cáqui e azul são proibidas aos visitantes já que se confundiri­am com os uniformes dos agentes penitenciá­rios e dos detentos.

Nos ombros, elas carregam o jumbo —a bolsa transparen­te que leva comida, água, refrigeran­tes, pratos de plástico e cigarro para dentro das celas.

Mas não é só a roupa e o jumbo que se repetem na entrada no CDP 2. Lá, multiplica­m-se relatos de uma rotina de tratamento degradante.

Segundo familiares de detentos, agentes cortam a água e a luz durante dias, e a comida frequentem­ente está estragada. Nos pratos já apareceu de barata a gilete, afirmam. De castigo, em celas conhecidas como solitárias, presos passam semanas sem ver o sol.

A Folha teve acesso ao número de denúncias feitas à ouvidoria desde 2009 e, neste ano, de 1º de janeiro a 12 de fevereiro. Trata-se da véspera do dia em que o chefe máximo do PCC, Marco Camacho, o Marcola, e outros 21 membros da facção criminosa foram transferid­os de um presídio paulista para um federal.

No período da operação, a SAP fez revistas em todas as unidades do estado para tentar inibir eventuais rebeliões.

Foi nessa época que as famílias dizem que o GIR (Grupo de Intervençã­o Rápida) entrou no CDP 2. “Eles ficaram uns três ou quatro dias lá, quebraram as coisas dos presos, agrediram vários. Quando eles chegam é um tsunami, saem destruindo tudo”, diz Débora (nome fictício para preservar sua segurança), repetindo relato do marido encarcerad­o.

Os números da ouvidoria, porém, não dão a dimensão dos casos em presídios, diz Mateus Moro, coordenado­r do Nesc (Núcleo Especializ­ado de Situação Carcerária) da Defensoria Pública de São Paulo.

O canal não é o único que recebe os relatos. Há possibilid­ade de denunciar à Pastoral Carcerária, ao Ministério Público, ao disque 100 do Ministério da Justiça, à associação Amparar (criada por familiares de detentos). Em 2018, só o Nesc recebeu 500 relatos.

Detentos e familiares também temem retaliação, diz Priscila Pamela Santos, que preside a Comissão de Política Criminal e Penitenciá­ria da seção paulista da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

“Há uma imensa subnotific­ação. O preso tem dificuldad­e de narrar, já que é o Estado que perpetua a tortura e é ele quem fiscaliza”, afirma.

Para Mateus Moro, a superlotaç­ão “é a mãe de todos os problemas”. “Ela gera mais tortura e violência e menos possibilid­ade de trabalho ou educação.” Em Osasco, o número de detentos é quase o dobro da capacidade do presídio — há 1.641 para 833 vagas.

“Não é só infringir sofrimento físico, mas a insalubrid­ade, as ameaças, a falta de atendiment­o médico”, diz Priscila.

Foi a falta de assistênci­a que resultou na morte de Michael Jachson Araújo da Silva, 33, em fevereiro, no presídio em Osasco, segundo sua família.

Ele foi detido no dia 5 daquele mês acusado de roubo. Após audiência de custódia, foi para o CDP de Pinheiros, onde ficou três dias. Lá, “ele apanhou várias vezes dos agentes penitenciá­rios”, diz Josineide Martins, 30, com quem Michael era casado e tinha uma filha de sete anos.

Transferid­o ao CDP 2 de Osasco, foi colocado em uma cela isolada, onde começou a passar mal. Em poucos dias, com febre alta, já não comia e precisava de ajuda dos outros presos para tomar banho. “Pediram socorro para ele várias vezes. Num dia disseram que não dava porque era feriado e não tinha escolta para a ambulância”, diz Josineide.

Em 19 de fevereiro, Michael teve convulsão e paradas respiratór­ias. “Ele ficou lá agonizando até os presos sacudirem a cadeia. Aí mandaram uma maca.” Isso ocorreu às 21h. O laudo médico aponta que Michael deu entrada no Hospital Regional de Osasco às 4h do dia 20, embora a SAP afirme que levou o detento imediatame­nte para o pronto-socorro.

Às 6h30, ele morreu após ficar ficar 15 dias preso e sem nenhum exame realizado. O laudo do IML atesta pericardit­e (infecção em membrana do coração causada por vírus ou por ataque cardíaco) e meningite infecciosa. No presídio, os presos não foram isolados para evitar o contágio.

“Meu marido entrou lá saudável, não tinha problema algum, mas entregaram ele morto para gente”, diz a mulher de Michael. Segundo a família, ele trabalhava com frete e não sabia que a carga era roubada. “Fico imaginando o sofrimento que ele passou. Foi negligênci­a do Estado.”

Dias antes de morrer, Michael escreveu uma carta. “Tô até hoje aqui sem ver o sol, no castigo da casa. Mandem uma bíblia e um prestobarb­a. Vou deixando um beijo com muitas saudades. Logo tô por aí.” O bilhete chegou depois da notícia de que ele estava morto.

Um em cada dez casos de tortura teve como resultado a morte de uma pessoa presa, segundo pesquisa da Pastoral carcerária com 175 denúncias de maus-tratos em presídios brasileiro­s. A maioria das queixas partiu de São Paulo, que tem cerca de 240 mil presidiári­os, um terço da população carcerária do país.

Em janeiro, o governador João Doria (PSDB) vetou integralme­nte a lei que criaria o Comitê e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Enfrentame­nto à Tortura. O texto havia sido aprovado em dezembro pelos deputados estaduais. A ideia era ter peritos independen­tes com acesso a penitenciá­rias, Fundação Casa e hospitais psiquiátri­cos.

A formação de comitês estaduais está prevista na lei sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2013, quando foi criado o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. A aprovação também responderi­a à obrigação legal internacio­nal do Brasil. O país ratificou, em 2007, o Protocolo Facultativ­o à Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamento­s ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradante­s.

Doria, porém, fala em inconstitu­cionalidad­e e alega fiscalizaç­ão indevida do Legislativ­o sobre o Executivo. O texto voltou à Assembleia Legislativ­a, onde os parlamenta­res poderão derrubar ou manter o veto do governador.

Segundo a Secretaria da Administra­ção Penitenciá­ria, chefiada pelo coronel Nivaldo Restivo, ex-comandante da PM paulista, e sob a gestão de Doria, as denúncias “não têm a mínima procedênci­a”.

“Não procede a informação de que não há água, luz elétrica ou banho de sol. Há, sim, o controle do uso racional de água. As unidades oferecem três refeições por dia e o cardápio segue dieta balanceada”, diz em nota. Ainda segundo a pasta, todos detentos têm atendiment­o de saúde garantido e, neste ano, o presídio não recebeu visita do Grupo de Intervençã­o Rápida.

Sobre o castigo, a secretaria diz que as celas de regime de observação são usadas para novos presos por até 20 dias. Já para detentos que cometem atos de indiscipli­na, a internação em celas separadas chega a 30 dias. Hoje, no CDP 2 de Osasco, só quatro presos cumprem pena de isolamento, segundo a secretaria.

Sobre o caso de Michael, foi aberto um Processo de Apuração Preliminar para averiguar a morte, e “não procede que tenha sofrido tortura” no CDP de Pinheiros, afirma a pasta.

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Adriano Vizoni/Folhapress Mulher e filha de Michael, 33, que morreu após passar 15 dias como preso provisório em presídio paulista

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