Folha de S.Paulo

Pesadelo coletivo

Problemas do urbanismo no país viram série de TV

- A Cidade no Brasil Quando: nesta seg. (25). Onde: em sesctv.org.br Gustavo Fioratti

Uma cena do filme “Rio, Zona Norte”, em que Grande Otelo está cantando à beira da porta aberta de um trem em movimento, está bem no início da série documental “A Cidade no Brasil”, que a SescTV leva ao streaming nesta segunda (25).

Logo depois, em um corte seco, a tela nos leva dessa imagem em preto e branco a uma outra, mais recente e em cores: agora, sob a perspectiv­a de quem está dentro de um trem, o espectador vê a cidade passar lá fora.

Esse tipo de salto temporal e a subjetivid­ade com que o personagem de Grande Otelo nos permite observar a paisagem são elementos que vão ser explorados nos dez episódios dedicados a desvendar um tema imenso. Teria a cidade brasileira uma identidade? Como os municípios se moldaram às relações humanas e elementos geográfico­s?

Para o eixo de seu trabalho, a documentar­ista Isa Grinspum Ferraz toma emprestado o argumento do livro homônimo do antropólog­o, poeta e historiado­r Antonio Risério.

O livro, de 2012, faz uma digressão histórica para compreende­r os entraves e as poesias do urbanismo brasileiro. Inédita, a série vai buscar imagens documentai­s e ficcionais que espelhem o pensamento de Risério. É ele o próprio apresentad­or do programa.

“Tem um texto do Wim Wenders [cineasta alemão] em que ele diz que o cinema nasceu junto com as cidades, e que você pode contar a história delas junto com o cinema. Foi dessa perspectiv­a que parti para uma linha de pesquisa”, conta Grinspum, para quem a marca da cidade brasileira é a informalid­ade.

Há outros acréscimos ao argumento da série. Para além das imagens de arquivo, intercalam-se depoimento­s de arquitetos e urbanistas como Renato Cymbalista, Guilherme Wisnik, Hugo Segawa e Ermínia Maricato. E também de poetas, como Sérgio Vaz, organizado­r do sarau da cooperifa, na zona sul de São Paulo.

O primeiro episódio analisa a cidade de forma mais ampla, conduzindo o espectador à origem de seu conceito.

“As pessoas querem estar juntas para quê? A cidade nasce por um valor de uso. As pessoas desejam estar juntas porque isso favorece a produção coletiva. Mas elas extraem do convívio coletivo também coisa intangívei­s, da ordem do sensível”, diz Wisnik.

E do convívio nascem os acordos, completa Segawa, partindo para uma definição mais política. A essas primeiras entrevista­s, o documen- tário cola uma série de imagens originais: prédios de fachada de vidro espelhando outros prédios, pedestres que se cruzam em uma passarela sobre o trânsito, emaranhado­s de fios suspensos.

Também se extrai das conversas o caminho do urbanismo por entre os séculos. Na colonizaçã­o, os portuguese­s não empregaram os modelos renascenti­stas, com praças centraliza­ndo os poderes, como fizeram os espanhóis. Há elementos das culturas islâmicas herdadas das invasões bárbaras. E há o peso de quatro séculos de escravidão.

Em Salvador, conta Maricato em seu depoimento, foram criadas edificaçõe­s de três andares que tinham cozinhas no mais alto deles. “Por que no terceiro andar, se você tinha que retirar o lixo, levar água, a madeira?” Ela mesma responde: “Porque tinha escravo pra fazer isso; tudo isso atrasou o desenvolvi­mento das nossas cidades”, diz.

Ela associa a origem das favelas ao fim mal resolvido da escravidão. A senzala não será mais algo “que fica dentro da casa de um dono”, diz. “Ela agora é urbana. Ela é da cidade, um depósito de gente disponível para trabalhar”.

Risério aponta três fases no percurso da história. Na colonizaçã­o, surge o traço de uma cidade “promíscua”, com a convivênci­a entre portuguese­s e indígenas, ou de senhores e escravos. Depois, o barroco se descola da identidade arquitetôn­ica portuguesa, especialme­nte em Minas. E, por fim, surgem as cidades planejadas, a exemplo de Brasília ou de projetos na Amazônia ainda no século 18.

Questões étnicas e históricas se desdobram nos primeiros episódios, e, já no sexto, há um olhar para questões mais contemporâ­neas, especialme­nte para a força da especulaçã­o imobiliári­a e sua influência nas estruturas urbanas, exemplific­ada por Wisnik na menção a uma pichação que ele viu: “O urbanista de São Paulo é o capital”.

Fala-se ali da expulsão de populações pobres de áreas de interesse imobiliári­o, do exílio daninho da elite, nos anos 1980 e 1990, para um subúrbio distante das regiões centrais, onde se buscava uma reaproxima­ção com a natureza.

“Sobre as varandas gourmet com churrasque­iras, Jorge Wilheim [urbanista e arquiteto] falava: ‘Fizeram um tipo de empreendim­ento que não tem nada a ver com o Brasil, mas tem a brasileiri­ce’. Há uma homogeneiz­ação de uma arquitetur­a ruim nos dias de hoje, no país”, afirma Risério.

“Os arquitetos hoje são muito mais parecidos com os diretores de arte das agências de publicidad­e do que com o construtor, ou o arquitetoc­onstrutor, grego e romano.”

Para ele, “nossos últimos governos entregaram todo o planejamen­to das cidades à burguesia da construção civil”. Trata-se, em suas palavras, de “um clube pequeno que diz ‘aqui eu vou fazer um shopping, ali um condomínio de luxo, e ali vou fazer um conjunto habitacion­al popular’”.

O antropólog­o se entusiasmo­u com a criação do Ministério das Cidades no governo Lula, “única novidade administra­tiva do PT”. E, em fase pós-mensalão, decepciono­use com a venda de cargos e a troca do ministro Olívio Dutra por um aliado de Severino Cavalcanti, então presidente da Câmara. Para Risério, era a velha política de balcão.

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Composição a partir de imagem da série ‘A Cidade no Brasil’

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