Folha de S.Paulo

Uma CPI contra a democracia

Pedido por ‘Lava Toga’ é ilegal e inconstitu­cional

- Cesar Habert Paciornik José Luis Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua Advogados criminalis­tas e membros do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Pela segunda vez este ano, o senador Alessandro Vieira (PPS-SE) protocolou pedido de instauraçã­o de CPI para “investigar condutas ímprobas, desvios operaciona­is e violações éticas por parte de membros do STF e dos demais tribunais superiores do País”. Basicament­e, pretende averiguar decisões de ministros das cortes superiores, questionan­do o mérito dos julgados, causas de suspeição e o uso do pedido de vistas.

O nome fantasia da manobra é “CPI da Lava Toga”, infame golpe de marketing para dar a impressão de que o Judiciário padece dos mesmos males apurados na Operação Lava Jato. Capcioso no nome, o pedido é ilegal e inconstitu­cional.

Ilegal porque ofende o regimento interno do Senado, que diz que “não se admitirá comissão parlamenta­r de inquérito sobre matérias pertinente­s: (...) às atribuiçõe­s do Poder Judiciário (artigo 146)”. A proibição é literal. Dispensa comentário­s.

A inconstitu­cionalidad­e do pedido é igualmente flagrante, mas com ares de farsa. De início, o requerimen­to sustenta que a fiscalizaç­ão dos tribunais é de responsabi­lidade do Senado, “conforme preceitua o inciso IV, art. 71 da Constituiç­ão da República”.

Ocorre que o inciso IV não diz nada disso. Prevê apenas que o Senado poderá fazer “inspeções e auditorias de natureza contábil financeira, orçamentár­ia, operaciona­l e patrimonia­l, nas unidades administra­tivas dos Poderes Legislativ­o, Executivo e Judiciário”. Ou seja, possui competênci­a constituci­onal só para auditar aspectos administra­tivos das unidades do Judiciário, não podendo, jamais, questionar o que ele julga.

O requerimen­to, além de deturpar dispositiv­o constituci­onal, cita equivocada­mente trecho de decisão do ministro Celso de Mello, desvirtuan­do completame­nte seu sentido. Um pedaço entrecorta­do de uma frase contida em voto no HC nº 79.441, de 1999, é transcrito pelo parlamenta­r para transmitir a falsa impressão de que o ministro admite a competênci­a de CPI para investigar atos jurisdicio­nais de magistrado­s.

No citado voto, Celso de Mello prega exatamente o contrário. O voto foi proferido no âmbito da “CPI do Judiciário”, instaurada para apurar, como foco principal, ilegalidad­es administra­tivas na construção do prédio do TRT-SP. Em sua manifestaç­ão, o ministro afirmou “que se revela constituci­onalmente lícito”, a uma CPI, apurar “atos de caráter não-jurisdicio­nal emanados do Poder Judiciário”, deixando bem claro que tal competênci­a “não se estende e nem abrange os atos de conteúdo jurisdicio­nal”.

Além de ilegal, a CPI requerida busca atacar o princípio da independên­cia funcional dos juízes, essencial para a democracia. É condição primordial para o funcioname­nto da Justiça que o magistrado tenha liberdade para decidir de acordo com suas convicções jurídicas, sem que seja prejudicad­o por suas manifestaç­ões, conforme reza a Lei Orgânica da Magistratu­ra.

O Judiciário certamente tem problemas que merecem ser debatidos e solucionad­os, mas não por uma CPI torta. Enquanto agir ao arrepio da lei e pautado pela ineficiênc­ia, demagogia e sensaciona­lismo, o Legislativ­o continuará sem credibilid­ade. E longe do exercício de sua nobre missão.

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