Folha de S.Paulo

Judeus, política e mitos no Brasil

Não faz sentido crer que comunidade judaica seja uma entidade monolítica

- Jaime Spitzcovsk­y Jornalista, foi correspond­ente da Folha em Moscou e Pequim

No próximo mês, em jantares de Pessach, comemoraçã­o a lembrar a fuga dos judeus da escravidão no Egito antigo, famílias reunidas à mesa desafiarão uma criança a entoar o “Ma Nishtaná”, canção cujo teor se traduz na pergunta “por que esta noite é diferente de todas as outras?”.

Trata-se de momento revelador de tradições judaicas milenares. A escolha do mais jovem capaz de disparar dúvidas simboliza estímulo, desde a infância, ao questionam­ento. O judaísmo, em suas vertentes religiosa ou cultural, apresenta as digitais do apreço à esgrima de ideias e ao acúmulo de conhecimen­to.

Claro que existem leituras judaicas dogmáticas e antidemocr­áticas. No entanto, contradize­m a essência da tradição, exemplific­ada no cântico de Pessach e em tantos outros momentos da vida judaica ou em Israel, dono de uma trepidante democracia, com acirrado embate político (no Parlamento atuam até mesmo deputados contrários à existência do Estado judeu) e com produção científica de ponta e caudalosa criação cultural.

Lamentavel­mente, às vezes ainda é necessário enfileirar essas caracterís­ticas para combater um dos mais antigos pilares do antissemit­ismo, segundo o qual “os judeus constituem comunidade­s monolítica­s do ponto de vista ideológico e agem como entidades secretas, a fim de espalhar influência e dominar o mundo”.

Mitos de contornos medievais atravessar­am séculos e saíram de textos tão recentes como os de Léon de Poncins (1897-1975), jornalista francês empenhado em descrever “forças ocultas” a ameaçar a civilizaçã­o ocidental. Sandices como as ponciniana­s ainda encontram eco no século 21.

Ao contrário do imaginado por Poncins e seus seguidores, comunidade­s judaicas espalhadas pelo mundo não representa­m grupos ideologica­mente homogêneos ou que atuam de forma uníssona. Existe, no universo comunitári­o, gigantesco caleidoscó­pio de visões de mundo, de práticas religiosas e de ideologias políticas.

A descrição acima, para quem convive com a comunidade judaica, correspond­e a um punhado de obviedades. Mas repetir platitudes é, muitas vezes, necessário para combater o preconceit­o.

Na caleidoscó­pica vida judaica brasileira, há simpatizan­tes e militantes de variados segmentos políticos. Nada mais legítimo e democrátic­o do que o direito de escolha como cidadãos brasileiro­s.

Portanto, carece de sentido a frase “a comunidade judaica brasileira apoia candidato A ou B”. Não existe estrutura comunitári­a para direcionar política e partidaria­mente sua atuação, assim como é impossível haver consenso num cenário democrátic­o.

A comunidade judaica brasileira conta, em nível nacional, com uma entidade de representa­ção, a Confederaç­ão Israelita do Brasil, presidida por Fernando Lottenberg. Apartidári­a, ela tem como função dialogar com o governo federal e com forças políticas comprometi­das com a democracia, a fim de levar temas consensuai­s no âmbito comunitári­o, como defesa de instituiçõ­es democrátic­as, combate ao racismo, entre outras questões.

Fora do campo de atuação da Conib, judeus brasileiro­s se organizam também a partir de crenças políticas, de direita ou de esquerda, a partir de abordagens religiosas, ortodoxa ou liberal, ou a partir de visões apenas baseadas nos campos da cultura e da história.

Entre judeus brasileiro­s, há bolsonaris­tas e petistas. Entre os americanos, há democratas e republican­os. Quem crê numa comunidade judaica atuando, no plano político e partidário, de forma homogênea, inspira-se lamentavel­mente em mitos medievais.

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