Folha de S.Paulo

Congolês foge da guerra, passa fome no Brasil e se torna ator de novela

Blaise Musipere vai interpreta­r refugiado haitiano em “Órfãos da Terra”, que estreia em abril

- Flávia Mantovani Ricardo Borges/Folhapress H ASSISTA A VÍDEO COM A HISTÓRIA DE MUSIPERE folha.com/mijw4xua

Tentando ajustar seu corpo de 1,86 m de altura a um estreito banco no Leblon, Blaise Musipere mostra como se virava para descansar, sentado, nas cinco noites em que dormiu na rua do bairro nobre do Rio de Janeiro.

Sem dinheiro para aluguel, o congolês, que trabalhava servindo mesas num dos restaurant­es mais premiados da cidade, pegava sua mochila no fim do expediente e ia dormir nesse banco, a algumas quadras dali.

“Eu vinha aqui e nunca tinha ninguém sentado, como se estivesse reservado para mim”, lembra. “Eu cruzava os braços e ficava aqui, vendo as pessoas passando”, lembra.

Musipere, 33, vive um misto de emoções ao voltar ao local três anos depois daqueles tempos duros. “Sinto tristeza, porque não queria passar por isso de novo, mas também alegria, porque sinto que tinha que passar por isso para chegar aonde cheguei.”

A vida dele, marcada por reviravolt­as desde a infância na República Democrátic­a do Congo, sofreu outra guinada em novembro passado, quando foi selecionad­o para o elenco da próxima novela das 18h da Globo, “Órfãos da Terra”, que estreia no próximo dia 2.

Ele interpreta­rá um haitiano, Jean Baptiste, que tem como pano de fundo o drama dos refugiados que vêm para o Brasil fugindo de guerras ou da crise em seus países.

Esse universo Musipere conhece bem. Chegou ao Brasil em 2008, graças a uma bolsa de estudos. Decidiu migrar porque não via perspectiv­as em seu país, assolado por conflitos como a Grande Guerra Africana (1998-2003), tida como a mais sangrenta desde a Segunda Guerra Mundial — estima-se o número de mortos em mais de 5 milhões.

Na verdade, Musipere viveu duas infâncias diferentes: até os 11, morava em uma casa confortáve­l numa vila militar na capital, Kinshasa. Seu pai era membro do Exército do ditador Mobutu Sese Seko, que governou por 32 anos.

Em 17 de maio de 1997, o destino da família de Musipere mudou junto com o do país. Mobutu foi deposto pelo rebelde Laurent-Désiré Kabila e foi para o exílio. A vila onde eles moravam seria atacada a qualquer momento.

O ator se lembra do episódio com lágrimas nos olhos. “Foi dois dias depois do meu aniversári­o”, conta. “Eu estava esperando meu pai chegar de viagem com um presente, mas ele veio correndo, de madrugada, dizendo para a gente deixar tudo para trás e fugir. Ele nos levou em um ca- minhão de soldados para uma casa no meio do mato e saiu. Nunca mais voltou.”

Além de rebatizar o país — então chamado Zaire— para República Democrátic­a do Congo (RDC), Kabila mudou a moeda, e a família de Musipere teve que queimar todo o dinheiro que tinha guardado. “Era muita grana. De repente, não valia mais nada”, diz ele.

A mãe ficou com os dez filhos na casa “sem piso, sem teto, sem nada”. Furtava mandioca de uma plantação para alimentá-los. “Até então, não sabíamos o que a população passava. Ali sentimos a miséria na pele. A gente não tinha o que comer. À noite uns bichos sugavam nosso sangue, fomos ficando fracos”, relata.

Foram ajudados por um pa- dre de um monastério. Mesmo assim, foi uma fase difícil.

“Aqui no Brasil as pessoas falam que tem guerra, mas não. Aqui tem conflito. Lá, você andava na cidade e via os buracos das bombas. Quando ela caía, você sentia o impacto em todo o seu corpo. Tudo o que você tinha comido você vomitava na hora”, descreve.

Nos períodos mais violentos, evitava sair de casa, para não ser levado à força para o front. Dois de seus irmãos foram mortos por uma bomba.

Em 2007, não aguentou mais. Tentou uma bolsa de estudos para o Brasil e passou, mas não tinha os US$ 1.500 (R$ 5.800) da passagem. Conseguiu boa parte do valor com vizinhos. “Via muita gente pobre na África, mas, quando era para me ajudar, as pessoas me davam US$ 10, US$ 20. Não acreditei”, afirma.

Do Brasil, só conhecia o futebol —lembra-se de torcer para a seleção na Copa de 1998 em uma pequena TV sem cores na casa de um amigo.

Chegou a Curitiba, cidade onde estudaria português, e foi morar com conterrâne­os. “Só vi a paz. Escutava passarinho­s cantando”, diz. Estranhou quando foi chamado para almoçar. “No Congo, a gente só comia uma ou duas vezes por dia. Comia quando tinha.”

Mas a vida não estava ganha. Musipere enfrentou os mesmos problemas de mui- tos imigrantes: comunicar-se, conseguir emprego, a saudade da família. Acabou reprovado no curso de português. Trabalhou ganhando R$ 25 por diária para lavar louça em um restaurant­e, depois em uma empresa. Mandava o que conseguia para a família na RDC.

Quando se sentia “totalmente perdido”, decidiu fazer um curso de interpreta­ção para a TV. O diretor, Alexandre Moretzsohn, gostou dele e o chamou para fazer um curta-metragem no Rio. Em 2013, foi selecionad­o para interpreta­r o haitiano Frédéric na série “Malhação”.

As economias que ele juntou nessa época, porém, foram embora em um golpe. Ele enviou quase tudo para um irmão realizar o sonho de cursar medicina na Austrália, mas a pessoa que lhe prometera a bolsa sumiu com o dinheiro. Musipere foi parar no banco do Leblon.

Depois disso, o ator fez uma participaç­ão na novela “Novo Mundo” (2017). No fim do ano passado, fez o teste para “Órfãos da Terra”. Para se manter no Rio, trocou moradia por serviço de pedreiro. Em novembro, já desiludido com a carreira artística, soube que havia sido selecionad­o.

Musipere diz ser grato por tudo o que passou. Seu otimismo impression­a os amigos brasileiro­s. “Nunca o vi abaixar a cabeça”, diz o também ator Felipe Lima, 27, que o conhece há quatro anos.

Até agora, porém, Musipere não falava publicamen­te sobre o passado, por medo do preconceit­o. “Hoje não tenho vergonha, mas sim orgulho de minha história.”

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Congolês Blaise Musipere, que vive no Rio

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