Folha de S.Paulo

Haiti foi marco, mas não causa da modernizaç­ão dos militares PODER

Especialis­ta em operações de paz afirma que Constituiç­ão de 1988 preparou as Forças Armadas para a missão na ilha caribenha, cujo legado se esvaiu após a retirada de 2017

- Danilo Verpa 30.ago.17/Folhapress

Igor Gielow

são paulo A longa missão de paz da ONU comandada pelo Brasil no Haiti foi um marco na modernizaç­ão do Exército, mas não sua causa —que se encontra na Constituiç­ão de 1988. Para os haitianos, seu legado se esvaiu com o fim dos quase 13 anos de operação.

As opiniões são do pesquisado­r Vinicius Mariano de Carvalho, professor no Brazil Institute e no Departamen­to de Estudos da Guerra do King’s College, de Londres.

A intervençã­o no Haiti, que durou de 2004 a 2017, voltou a ficar em evidência com o governo Jair Bolsonaro: nada menos que 5 de seus 22 ministros serviram na ilha caribenha, e vários outros altos cargos são preenchido­s por egressos da missão.

Para Carvalho, a “turma do Haiti” é formada por membros coesos e com exposição alta à política internacio­nal, os tornando muito qualificad­os.

Ao ser questionad­o sobre a intervençã­o branca da ala militar do governo no Itamaraty, para evitar passos em falso do chanceler Ernesto Araújo em questões como a crise na Venezuela, ele diz que o ideal é que todos deem sua opinião.

Carvalho é especialis­ta em missões de paz. Ele esteve no Haiti em 2013 e 2017, e se prepara para publicar um trabalho sobre o impacto da Minustah (Missão de Estabiliza­ção das Nações Unidas no Haiti).

Ele também nega um mito corrente entre forças de segurança brasileira, segundo o qual o Haiti preparou o Exército para subir morros e para as Operações de Garantia da Lei e da Ordem, as famosas GLOs. “Já havia doutrina para isso”, disse, por telefone.

Carvalho, 43, defende a experiênci­a das missões de paz. O Brasil está em 9 das 14 operações do gênero, mas só tem presença de relevo na costa do Líbano, com 220 dos 221 militares empregados fora.

Servidores civis ao todo são 19, especialis­tas, 18, e policiais, 10. Serviram na ilha 37,5 mil soldados ao longo dos 13 anos.

No Haiti, a missão era tentar restaurar a ordem após a derrubada do presidente Jean-Baptiste Aristide. Não foi simples, dada a ação de gangues multiplica­das pelas favelas da capital, Porto Príncipe.

Do ponto de vista militar, o Brasil foi criticado por suposto excesso em algumas operações. O terremoto de 2010, que matou 220 mil pessoas (incluindo 96 soldados da ONU, 18 deles brasileiro­s), e um surto de cólera oriundo de tropas da ONU pioraram as condições.

Em 2016, houve eleições presidenci­ais, mas a instabilid­ade e a violência já estão de volta às ruas do país neste ano.

O sr. busca separar o impacto da Minustah sobre as Força Armadas e para o conceito de operações de paz. Qual sua avaliação?

A operação era uma novidade na ONU, e demandou um forte aspecto de adaptabili­dade. Havia a necessidad­e de empregar técnicas táticas, e havia uma correlação entre os componente­s civil e militar da missão, um quadro bastante complexo de atores. O contingent­e militar era muito grande [passou de 12 mil, encerrou com quase 5.000 soldados, um quinto deles do Brasil] e navegou em águas não muito claras, se a missão era de manutenção de paz ou de construção da paz. Ao fim, ele obrigou a ONU a repensar suas operações.

A Minustah se tornou uma grande escola para as Nações Unidas compreende­rem a realidade em ambiente nos quais as forças oponentes não são muito claras. O Brasil teve papel bastante relevante nisso. Foi uma experiênci­a, não direi nem positiva, nem negativa.

Até hoje, forças de segurança vendem a ideia de que o Haiti foi uma escola para a atuação em favelas. Isso é um mito?

É importante lembrar que antes da Minustah já havia doutrina para isso. A Constituiç­ão de 1988 deixa claro que parte do treinament­o das Forças Armadas era para garantia da lei e da ordem. O grande ganho para elas foi a exposição a outras doutrinas e práticas.

Ela não era uma operação brasileira, apesar de que o componente militar maior sempre foi o brasileiro e o comandante era um general daqui. Outro grande ganho que não é lembrado foi o aprendizad­o de operação entre agências.

Isso é mais importante do que os ganhos táticos no Haiti. A Minustah não foi um laboratóri­o para operar nas favelas. Foi uma feliz coincidênc­ia haver a necessidad­e de operações no Brasil, mas aqui era outro contexto. Era muito diferente do que ocorria no Rio, do ponto de vista tático e político.

Como assim?

A Minustah era multinacio­nal com mandato da ONU, com regras de engajament­o escritas. Ela era muito mais ampla. As GLOs são requisitad­as por governos de Estado para segurança pública. Aqui, o emprego de tropas precisava de um claro amparo legal para evitar violações, um arcabouço.

Uma crítica comum é a de que o Brasil estava fazendo serviço sujo para outras potências, como os americanos. Isso é curioso, sempre se diz que outros países limpam a sujeira das grandes potências. Os EUA usualmente não mandam tropas.

A aprovação pelo Conselho de Segurança, em particular pelos cinco membros com poder de veto, mostra que isso transcende a ingerência americana. E o Brasil teve pela primeira vez uma atitude ativa, não apenas reativa.

Em que a Minustah falhou? Qual sua principal crítica a ela?

Ela foi longa demais, e parte disso se deveu ao terremoto de 2010. Em certo momento, ela diluiu-se em seus objetivos. No Timor-Leste, a ONU tutelou a criação do Estado por dois anos. No caso do Haiti, ela ficou como uma missão de estabiliza­ção que durou 13 anos.

Nesse período todo, muito do que seria necessário para uma transição para uma democracia não aconteceu. Hoje nós vemos os conflitos retornarem às ruas de Porto Príncipe, e temos lá a Missão de Transição. Aqui, é importante dizer que não se tratava apenas de uma questão do componente militar, mas ela virou um para-Estado dentro do Haiti. Quando ele saiu, o Haiti se viu novamente sem estabiliza­ção.

Em 2014 e 2015, a ONU estudou as missões de paz num painel liderado pelo ex-presidente timorense José RamosHorta, no qual estava o general brasileiro Floriano Peixoto, hoje ministro. O grupo absorveu alguma lição do Haiti?

Sim. Ramos-Horta esteve aqui no King’s College e deixou isso claro. A primazia sempre deve ser do aspecto político. Não será um robusto componente militar que vai conseguir fazer o país ser bem-sucedido. Ficou clara também a questão da proteção de civis.

A página mais sinistra da Minustah foi a introdução do cólera na ilha por meio das tropas [no caso, provavelme­nte de soldados nepaleses; doença matou mais de 10 mil pessoas].

Qual o impacto do terremoto na formação dos militares brasileiro­s?

Foi o maior desastre humano da ONU. Apenas Floriano, que era o comandante militar, sobreviveu na cúpula da missão. Em 2009, a estabiliza­ção já estava em nível muito desejável, com Judiciário e modelos de eleição funcionand­o. As maiores gangues estavam neutraliza­das. Aí veio o terremoto, que danifica completame­nte qualquer estrutura de Estado, além de ser uma catástrofe. O influxo de auxílio humanitári­o causou um desafio logístico incrível. Afeta a moral de todos.

Foi quando chegaram os americanos. Sim, mas é bom lembrar que nos primeiros dias depois do terremoto quem mandava era Floriano.

Ele manejou de maneira exímia a cooperação militar americana, a ponto de que os soldados dos EUA não andavam armados.

Os brasileiro­s respondera­m rapidament­e com a instalação de um segundo batalhão, com muitos voluntário­s que já conheciam a realidade local.

A resposta imediata foi muito boa, mas a missão teve de ser reconfigur­ada, o que causou a falta de orientação a seguir. Ela ficou sem direção.

Essa é uma visão que isenta o comando militar, não?

Ele precisa ter claras orientaçõe­s. Ele não pode fazer como bem entender. Assim, não dá para responsabi­lizar os comandante­s militares pelo que aconteceu depois. Eu acho que deveriam ter aumentado o componente policial após o terremoto, que pudesse fazer a Polícia Nacional Haitiana ser efetiva.

Isso era um dos objetivos, e ficou muito abaixo do que deveria ter sido.

O sr. vê correlação entre a ascensão da chamada “turma do Haiti” no governo Jair Bolsonaro com sua experiênci­a formativa na ilha?

A proporção de oficiais superiores e generais que serviram no Haiti é muito grande. Isso os forjou com capacidade de trabalho internacio­nal e de compreensã­o de contexto políticos.

Para ficar em dois ministros egressos de lá, Carlos Alberto dos Santos Cruz implemento­u a brigada de intervençã­o da ONU depois no Congo. Floriano Peixoto participou do painel de operações de paz.

Obviamente isso os coloca em destaque dentro do Brasil, até porque a decisão política que recai sobre o comandante de força numa missão é relevante. É interessan­te essa experiênci­a, e espero que sigam úteis. O mesmo vale para o envio de um general brasileiro para o Comando Sul dos Estados Unidos.

Qual o futuro das próximas missões para o Brasil?

Tem de ser uma decisão ativa, não reativa. Que a gente tenha a capacidade de fazer proposiçõe­s. A escolha não pode ser convenient­e. Tem de haver mais civis nas operações de paz também.

Com tudo isso, 2004 é o principal marco do pós-1985 para os militares?

Acho que não. Isso começa em 1988, quando a Constituiç­ão reajusta o papel que o Exército vai ocupar. Nas Forças Armadas em geral, e no Exército em particular, surgem programas de modernizaç­ão tanto tecnológic­os quanto doutrinári­os.

Com isso, há um Exército mais moderno, grande atividade de circulação de militares em escolas no exterior, há um intercâmbi­o muito maior.

Isso marcou toda uma geração, que sabe ser necessário entender sobre geopolític­a, falar línguas. O Haiti é uma consequênc­ia disso, não a causa. Isso se aplica à Marinha, que desde 2011 comanda a força naval da Unifil (Líbano), a única do tipo da ONU hoje.

Esse protagonis­mo político levou ao episódio em que os militares interviera­m nas ações do chanceler sobre a Venezuela. Há o risco de isso sair de controle?

Temos três meses de governo, e surgiram situações que demandaram diplomacia de defesa muito grande, como é o caso da Venezuela.

O que me parece é que as Forças Armadas e o próprio vice-presidente [general Hamilton Mourão, que assumiu negociaçõe­s na reunião do Grupo de Lima sobre a crise venezuelan­a na semana retrasada] têm deixado clara a implicação de decisões diplomátic­as na área de defesa.

Espero que as tomadas de decisões de uma grande estratégia nacional não sejam apenas dos ministros ou do vice, mas por parte de uma confluênci­a de atores. Não pode ser decisão de um ou outro, para não haver equívocos.

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Brasileiro­s com crianças haitianas em despedida de favela em Porto Príncipe

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