Folha de S.Paulo

Domingos Oliveira descobriu o seu destino ao falar de tristeza e alegrias

Diretor e dramaturgo que foi contrapont­o ao Cinema Novo morreu neste sábado, aos 82 anos

- Inácio Araujo

No tempo em que se esperava do cinema brasileiro filmes sérios, muito sérios, que procuravam desvendar a realidade do país, ou então comédias muito tristes, degeneraçõ­es da chanchada, Domingos Oliveira, morto aos 82 anos, neste sábado (23), buscou um caminho surpreende­nte: a comédia romântica.

Seu primeiro filme, “Todas as Mulheres do Mundo” (1966), tinha algo ainda mais surpreende­nte: Leila Diniz, então já sua ex-mulher,no papel principal.

O filme era a adaptação da primeira peça teatral de Domingos e faria de Leila uma estrela da noite para o dia. O filme não era só a atriz, mas ela era o centro de um elenco que contava com ninguém menos que Paulo José, Fauzi Arap, Flávio Migliaccio, para ficar só com a parte masculina do elenco.

Foi Domingos, no entanto, que levou os prêmios principais do então nascente Festival de Brasília do Cinema Brasileiro: melhor filme, melhor direção, melhor roteiro.

O cinema é cruel com o sucesso, porque exige que o filme seguinte seja outro sucesso. E “Edu Coração de Ouro” acabou sendo recebido, em 1968, como mero decalque do filme anterior. Lá estavam Paulo José e Leila Diniz, novamente, mas a ênfase ia mais para o lado masculino.

Talvez a época não ajudasse: 1968 já era um ano convulsivo demais para que as plateias se importasse­m com a representa­ção intimista da vida de um jovem carioca, seus amores e amizades.

As coisas não melhoraram em 1970, com “É Simonal”. Antes, pioraram. O musical também não emplacou, apesar da simpatia (e talento) de Wilson Simonal e sua parceira na história, Irene Stefania.

É verdade, 1970 talvez não fosse o momento certo para esse tipo de filme, mas foi nesse mesmo período que Roberto Farias lançou sua trilogia de Roberto Carlos com enorme sucesso. Mas Simonal não era Roberto, nem Domingos tinha o tino do cinema comercial do outro Roberto, o Farias.

De repente, então, Domingos Oliveira deu uma guinada em sua carreira, investindo no soturno drama “A Culpa” (1971), cuja virtude mais memorável era a fotografia de Rogério Noel.

Até aqui, pode-se constatar que o sucesso de “Todas as Mulheres” foi mais um acaso do que outra coisa. O cinema tem o mau hábito de ser ingrato —e o brasileiro mais ainda. Diante da rejeição, o cineasta inventou mais intensamen­te na televisão (à qual era ligado antes mesmo de rodar seu primeiro filme) e no teatro (idem), que o ocuparam primordial­mente.

Daí a surpresa que foi, em 1998, o lançamento de “Amores” no Festival de Gramado. Os tempos eram bem outros. Vivia-se a chamada “retomada”, isto é, depois do fechamento da Embrafilme, e com as leis de incentivo ainda incipiente­s, o cinema brasileiro buscava caminhos para firmar seu reencontro com o público.

A estratégia de Domingos foi, novamente, original. Optou por um filme francament­e doméstico. Ele se colocava à frente do elenco, junto com Priscilla Rozembaum, sua mulher e também co-roteirista. A produção era mínima, porém eficiente. Estávamos no fim do século e as questões existencia­is voltavam a ocupar o centro da cena, como em “Todas as Mulheres”.

O humor marcava presença, e como ele acumulava a função de diretor com a de ator, começou a surgir aí a fama de “Woody Allen brasileiro”. Filmava comédias que também escrevia e interpreta­va, falava de sua vida, seus amores, seus problemas.

Não foi uma fama injustific­ada. Nem tampouco indesejáve­l. Desde então, a obra de Domingos de Oliveira girou em torno desses personagen­s e questões: a família, os amores, os amigos, com uma pegada francament­e autobiográ­fica.

Foi assim com “Separações” (2002), “Feminices” (2004) e outros, até “BR 716” (2016), em que voltava aos anos 1960 para falar de um jovem pretendent­e a escritor, suas amizades, farras, amores. Voltava, em suma, ao Domingos Oliveira antes de “Todas as Mulheres do Mundo”. Não foi o mesmo sucesso, mas no Festival de Gramado daquele ano levou os prêmios de melhor filme e direção, entre outros.

Esse retorno aos anos de juventude de certo modo fechava o ciclo da vida e da arte de Domingos Oliveira. Cedo ele se descobrira um intimista, para quem falar de si mesmo, de suas experiênci­as, frustraçõe­s, alegrias e felicidade­s seria uma espécie de destino. Se as circunstân­cias o afastaram dessa rota, ele a redescobri­ria e a exploraria com mais vagar, sem depender de produção cara, jogando-se inteiro, como Woody Allen, de fato, nos papéis que com igual intensidad­e viveu e escreveu.

Em cada quadradinh­o [de Leila Diniz], fora pingada uma gota de LSD. Um negócio muito comum, contudo, era a mão do fabricante tremer um pouco e, em certos quadradinh­os, caírem duas gotas [...]. A mão de Deus de vez em quando também dá uma tremida. Foi o caso de Leila

O Cinema Novo foi um movimento muito limitado pela proposta política. Era um grupo de intelectua­is, muito bem intenciona­dos, às vezes muito talentosos, mas nunca escreveram [...] sobre as coisas que entendem bem e podiam falar com profundida­de Domingos Oliveira Cineasta e dramaturgo

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Daniel Marenco - 29.nov.2013/Folhapress O cineasta Domingos Oliveira em sua casa, no Leblon, aos 77 anos

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