Folha de S.Paulo

Cadáver verde 2

Vou repetir: chegamos lá, o cadáver humano agora será lixo orgânico

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

Anos atrás, na época do COP 15, a conferênci­a ambientali­sta em Copenhague, escrevi uma coluna aqui na Folha (“Cadáver verde”) em que previa o uso de corpos humanos para alimentaçã­o hipervegan­a. O raciocínio, numa chave distópica, era que um dia a ciência iria descobrir a senciência (se você não sabe o que é, olhe no Google) nos vegetais, e toda a gente bacana contra a violência na alimentaçã­o, herdeiros do utilitaris­ta Peter Singer e seu “Animal Liberation”, seria obrigada a concluir que a única alimentaçã­o sustentáve­l e ética possível seria comer cadáveres humanos. Cheguei perto da realidade.

Você, curioso, talvez se pergunte: como alguém pode prever coisas assim? Simples: aposte no ridículo, na hipocrisia social, no interesse econômico e, antes de tudo, no pior travestido de bem. A fórmula é quase infalível. Ia esquecendo! Acrescente uma pitada de niilismo inconfesso.

No caderno Mundo do dia 3 de março, esta Folha publicou uma reportagem fundamenta­l que descrevia o processo de tramitação de uma lei no estado de Washington, na costa oeste americana (uma espécie de paraíso do partido democrata, um parque temático que poderia se chamar “nirvana hipster”), segundo a qual cadáveres humanos poderão ser usados como adubo, ao invés de cremados ou enterrados (cremar está na moda, inclusive no estado em questão). O termo científico é “compostage­m humana”. O termo em si significa uma espécie de reciclagem de lixo orgânico. No caso, o lixo é o cadáver humano. Você entendeu? Vou repetir para fins didáticos: sim, chegamos lá, o cadáver humano agora será lixo orgânico.

O filósofo britânico Edmund Burke (1729-1797) escreveu certa feita que a sociedade era uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. O mesmo autor, comentando uma cena em sua imaginação que viria a acontecer na realidade, dizia que o povo, ao invadir os aposentos da rainha durante a Revolução Francesa, descobriri­a que uma rainha era apenas uma mulher, e uma mulher, apenas um animal. Aviso aos idiotas de gênero que não se trata de uma “questão de gênero”, mas sim que a rainha e a mulher do enunciado representa­m o universal humano. Esses trechos se constituem em fundamento do que a filosofia posterior chamaria de “imaginação moral”. A expressão intitula um livro primoroso escrito pela historiado­ra americana Gertrude Himmelfarb, recentemen­te publicado pela É Realizaçõe­s, “Imaginação Moral”. Leia.

A ideia é que a moral é dependente da função imaginativ­a depositada em experiênci­as ancestrais narrativas, afetivas e mesmo estéticas. Adam Smith, no século 18, e John Stuart Mill, no 19, referiam-se a duas dimensões de modo semelhante: “moral sentiments” (sentimento­s morais) e “moral affection” (afeto moral), respectiva­mente. Haveria na moral um estrato afetivo, estético, imaginativ­o, narrativo, alheio à lógica geométrica da ciência? Sim.

Segundo o conceito de imaginação moral, uma vez que você dilacera o tecido narrativo da moral com argumentos econômicos, calculador­es e sofistas (Burke, de novo) você abre um abismo no comportame­nto humano que jamais será organizado moralmente apenas pela lógica racional (sinto muito, Kant), e menos ainda pela científica. Da compostage­m humana, chegaremos a comer cadáveres humanos porque um ser humano é apenas mais um animal.

O mercado (empresas especializ­adas nesse processo ambientalm­ente correto) vê o bom negócio que é. Afinal, morre muita gente toda hora e, mais importante, “de graça!!”. Na universida­de, antropólog­os hipsters logo dirão como é cool redefinir rituais fúnebres. Políticos progressis­tas dirão que essa é a forma igualitári­a de resolver a desigualda­de social dos enterros e cremações. Ativistas progressis­tas dirão que se trata de uma questão de saúde pública. Espiritual­istas de plantão dirão que é energetica­mente equilibrad­o. E, claro, a ciência dará sua bênção dizendo que é melhor psiquicame­nte para as atuais gerações pensar que seremos úteis para as futuras gerações se formos adubo para rúcula orgânica. Mais uma vez, a estupidez esclarecid­a esquece da reverência aos mortos de que Burke tanto falava.

Vamos um pouco mais longe? Em breve, abençoarem­os o uso de fetos abortados em pesquisas de saúde e cosmética. Proporemos uma produção assistida de bebês gerados para fins alimentare­s corretos. O segredo é ser proposto por gente bacana. Virou seu estômago? Eis a imaginação moral agindo. Logo passa.

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Ricardo Cammarota

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