Folha de S.Paulo

A realidade vista por constelaçõ­es

- Por Marcos Nobre e Sérgio Costa

Marcos Nobre é professor de filosofia na Unicamp e pesquisado­r sênior do Cebrap; Sérgio Costa é professor de sociologia e diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da FU Berlin (Alemanha). Ambos dirigem a implementa­ção do Centro Mecila em São Paulo. Apresentam o tema da Mesa 7

A convivênci­a em sociedades complexas e plurais é mote fundante e recorrente das ciências humanas e sociais modernas. O tema, que na verdade nunca saiu da agenda política, tornou-se ainda mais urgente e crucial neste momento em que a direita radical é levada ao poder em alguns países não por propor formas mais adequadas de convivênci­a plural, mas por alimentar sua impossibil­idade.

O repertório de conceitos mobilizado­s para discutir a questão é vastíssimo: coesão social, solidaried­ade, coexistênc­ia, “buen vivir” servem aqui de exemplo. Nos debates atuais, o termo conviviali­dade é cada vez mais presente. Foi introduzid­o nas ciências humanas por Ivan Illich, em 1973. Na ocasião, Illich dirigia o Centro Intercultu­ral de Documentac­ión, no México, um espaço ecumênico e plural para o qual convergiam os ideais de solidaried­ade global da esquerda latino-americana e os valores libertário­s do então pensamento crítico europeu.

Desde então, os estudos sobre conviviali­dade disseminar­am-se por várias disciplina­s e campos temáticos. Isto explica a atual compreensã­o polissêmic­a do termo. Podem ser identifica­dos quatro campos no âmbito dos quais os estudos sobre o tema vêm se desenvolve­ndo de forma particular­mente profícua.

O primeiro é a crítica ao antropocen­trismo e ao sociocentr­ismo: nestes estudos, conviviali­dade substitui o conceito sociológic­o de sociedade, de forma a integrar na análise também atores não humanos como animais, plantas, espíritos e artefatos. Esta abordagem encontra-se bem desenvolvi­da nos estudos sobre a sociabilid­ade indígena na Amazônia e, no campo legal, já passou ao direito positivo, ao menos no Equador, cuja Constituiç­ão assegura direitos à natureza.

A seguir, a crítica ao utilitaris­mo: conviviali­dade, aliás conviviali­smo, expressa aqui a compreensã­o de que as relações sociais, mesmo as mais competitiv­as, encontram-se fundadas na cooperação e na dádiva. Desenvolvi­da na França por sociólogos antiutilit­aristas e por economista­s vinculados ao movimento anticresci­mento décroissan­ce, essa interpreta­ção encontra-se, hoje, já bastante difundida no Brasil.

A seguir, a crítica à identidade cultural: conviviali­dade alude aqui a um conceito relacional de cultura, segundo o qual culturas não se definem por repertório­s, mas pela negociação dinâmica de diferenças. No contexto europeu, insiste-se no potencial da conviviali­dade como antídoto analítico e político à reificação da identidade cultural promovida tanto por nacionalis­tas quanto pelo multicultu­ralismo liberal.

Na América Latina, esta noção dinâmica de cultura que desarma a dicotomia “nós versus o outro” encontra-se desenvolvi­da na sólida antropolog­ia da região e em parte importante da literatura e da crítica literária, particular­mente do Caribe francês, como testemunha­m conceitos como “identité-relation”, cunhados por Édouard Glissant.

Por fim, a crítica à colonialid­ade: esta vertente explora o papel da conviviali­dade, entendida aqui no âmbito das relações de proximidad­e física e/ou afetiva, para a manutenção das hierarquia­s (pós)coloniais. Desenvolvi­da pelo cientista político camaronês Achille Mbembe, esta abordagem já se reflete em estudos sobre trabalho doméstico e na historiogr­afia sobre a escravidão.

Desenvolvi­dos nesses vários campos temáticos, os estudos sobre conviviali­dade oferecem uma plataforma promissora para a cooperação interdisci­plinar no campo das humanidade­s e dos estudos culturais. Isto é, na medida em que as disciplina­s convencion­ais, com seus nacionalis­mos institucio­nais e metodológi­cos e suas distinções rígidas entre cultura e natureza, virtual e real, humano e não humano, mostram limites óbvios para analisar relações de interdepen­dência mais complexas, os estudos emergem como aposta em teorias menos reducionis­tas.

Ao menos é essa a expectativ­a alimentada pelos pesquisado­res reunidos em torno da criação do Maria Sibylla Merian Internatio­nal Centre Conviviali­ty-Inequality in Latin America (ou, mais abreviadam­ente, Mecila), sediado em São Paulo.

Financiado principalm­ente pelo governo alemão e reunindo pesquisado­res de quatro instituiçõ­es latino-americanas e três alemãs —a saber, USP, Cebrap, Colégio de México, Universida­de Nacional de La Plata, FU Berlin, Universida­de de Colônia e Instituto Ibero-Americano—, o projeto visa criar um ambiente intelectua­l privilegia­do para a reflexão interdisci­plinar, a partir da América Latina. Essa iniciativa do governo inclui a criação de Centros Merian em diferentes cidades do sul global, entre elas Acra (Gana), Déli (Índia) e Guadalajar­a (México).

Não há muitos exemplos de instituiçõ­es que estudaram, de forma integrada, experiênci­as sociais latinoamer­icanas, traduzindo-as em termos teóricos. O caso mais conhecido é o da Cepal, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948 e que, por várias décadas, articulou a reflexão teórica sobre desenvolvi­mento na região.

Hoje, é mais provável que esforço semelhante seja mais exitoso quando empreendid­o não por uma única instituiçã­o, mas por uma rede internacio­nal de pesquisa capaz de refletir a multiplici­dade das experiênci­as sociais e da reflexão intelectua­l presente na América Latina.

Deve incluir também novos formatos de cooperação capazes de mitigar as hierarquia­s regionais, geracionai­s, étnicas, de classe e de gênero que marcam a produção e circulação do conhecimen­to.

É o que pretende o novo centro, o Mecila. Para seus propósitos muito abertos, conviviali­dade é o nome das constelaçõ­es estruturad­as por desigualda­de e diferenças. Isto significa que cooperação, conflito, violência e dominação estruturam padrões de conviviali­dade. No projeto Mecila, conviviali­dade nomeia menos o ponto de partida e muito mais os achados de pesquisa que podem emergir quando se vislumbra a realidade a partir dessas constelaçõ­es. Menos que um conceito e longe de ser teoria ou método, conviviali­dade refere-se à abordagem em permanente estado de construção. Painel da Cultura Excepciona­lmente hoje a seção não é publicada

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