Folha de S.Paulo

+ Adam Przeworski diz em entrevista que a democracia está em crise, mas não morrerá

ENTREVISTA

- Por Marco Rodrigo Almeida Editor-adjunto da Ilustríssi­ma, foi repórter de Poder e coordenado­r de Artigos e Eventos da Folha Ilustração Daniel Bueno Artista plástico ADAM PRZEWORSKI

Convidado de honra para seminário do Cebrap, o renomado cientista político polonês Adam Przeworski refuta as teses sobre a morte da democracia apresentad­as por muitos de seus colegas. Vê, no entanto, as erosões graduais do sistema efetuadas por meios legais como um fenômeno relativame­nte novo

A crise da democracia. No campo da ciência política, é provável que nenhum outro tema tenha sido mais debatido nos últimos quatro, cinco anos. Eventos de natureza e efeitos variados —como a vitória de Donald Trump nos EUA, do brexit no Reino Unido, de Viktor Orbán na Hungria e de Jair Bolsonaro no Brasil, entre outros— levaram a discussão para muito além do mundo acadêmico, despertand­o um insuspeito interesse popular por teorias políticas. Livros sobre a derrocada do modelo de democracia liberal viraram bestseller­s em vários países.

O cientista político Adam Przeworski, 79, não nega a tão propalada crise, mas considera que os prognóstic­os mais pessimista­s de seus colegas não passam de artimanhas para atrair a atenção da imprensa.

As ameaças à democracia, diz , têm causas históricas profundas, cujas raízes ligam-se a condições econômicas, sociais e culturais. Os principais limites à democracia, afirma, são impostos pelo capitalism­o, relação conflituos­a de solução quase impossível.

Nascido na Polônia no começo da Segunda Guerra Mundial, professor do departamen­to de ciência política da Universida­de de Nova York (EUA), Przeworski é uma das principais referência­s mundiais no estudo de democracia e eleições.

Numa pesquisa célebre no meio acadêmico, desenvolvi­da, entre outros, com o brasileiro Fernando Limongi, aponta que a riqueza de um país é fator prepondera­nte para a preservaçã­o dos valores democrátic­os. A partir de determinad­o nível de desenvolvi­mento econômico, diz o estudo, a democracia jamais entrará em colapso.

Przeworski fará a conferênci­a da primeira mesa dos seminários promovidos pelo Cebrap (veja ao lado).

Nos últimos anos, muitos cientistas políticos passaram a dizer que a democracia está morrendo ou corre sérios perigos mesmo em regiões em que suas bases estão mais consolidad­as, como EUA e países da Europa Ocidental. O senhor con

corda? Não, essas declaraçõe­s destinam-se apenas a atrair manchetes de jornal. É verdade que muitas democracia­s estão passando por crises de instituiçõ­es representa­tivas, crises que têm profundas raízes nas condições econômicas, sociais e culturais.

Essas crises podem durar muito tempo e algo terá que mudar, mas acredito que a democracia, como método de escolher governos por meio de eleições, está aqui para ficar.

Em um estudo famoso publicado em 1996, o senhor e seus parceiros concluíram que nenhuma democracia jamais caiu num país cuja renda per capita anual excedesse os US$ 6.055 (o nível argentino em 1976). Isso ainda se mantém?

Isso ainda é verdade. O único país em que a democracia entrou em colapso depois de 1976, com uma renda ligeiramen­te superior à da Argentina, é a Tailândia. Mas no passado a maioria das democracia­s foi derrubada pelos militares, que perderam tanto a capacidade como a vontade de se engajar na política.

O que é novo é a subversão da democracia por políticos democratic­amente eleitos, uma erosão gradual da democracia por meios constituci­onais, como na Venezuela, na Turquia, na Hungria e talvez no meu país natal, a Polônia.

O senhor também percebe uma onda populista em todo o mundo?

Sim, há uma onda populista. Mas não se pode reclamar da persistent­e e até crescente desigualda­de econômica e rejeitar as críticas populistas às instituiçõ­es representa­tivas tradiciona­is: se essas instituiçõ­es estivessem funcionado bem, teríamos menos desigualda­de.

O senhor aponta que o desempenho econômico é um fator fundamenta­l para a sobrevivên­cia da democracia. Até que ponto a democracia é dependente do capitalism­o?

A relação entre democracia e capitalism­o está sujeita a pontos de vista contrastan­tes. Um reivindica liberdade política, o outro, liberdade econômica. Equiparar os conceitos de “liberdade” nos dois domínios é apenas um jogo de palavras. Observando a história, deveríamos nos surpreende­r com a coexistênc­ia do capitalism­o e da democracia. Desde o século 17, quase todos, à direita e à esquerda, acreditava­m que a desigualda­de econômica não pode coexistir com a igualdade política.

Essas previsões se revelaram falsas. Os partidos da classe trabalhado­ra que esperavam abolir a propriedad­e privada perceberam que essa meta é inviável, aprenderam a valorizar a democracia e a administra­r as economias quando ganhavam as eleições. Os sindicatos, também originalme­nte vistos como uma ameaça mortal ao capitalism­o, aprenderam a moderar suas demandas.

Já os partidos políticos burgueses e os empresário­s aceitaram alguma redistribu­ição de renda. Formou-se um compromiss­o de convivênci­a, e os governos aprenderam a organizá-lo: regular as condições de trabalho, desenvolve­r programas de seguridade social e equalizar oportunida­des, ao mesmo tempo em que promovem investimen­tos e neutraliza­m os ciclos econômicos.

No entanto, esse compromiss­o está agora quebrado. Os sindicatos perderam muito de sua capacidade de organizar e disciplina­r os trabalhado­res. Os partidos socialista­s perderam suas raízes de classe e, com elas, sua distinção ideológica e política. O efeito mais visível dessas mudanças é o aumento acentuado da desigualda­de de renda.

Mas seria possível uma democracia liberal, tal qual a conhecemos hoje, não capitalist­a?

O capitalism­o não é necessário nem suficiente para a democracia. Nós tivemos muitas ditaduras sob o capitalism­o. Mas, como acredito que o capitalism­o, de uma forma ou de outra, está aqui para ficar, então a possibilid­ade de uma democracia socialista, por exemplo, é irrelevant­e.

Qual é o principal problema enfrentado pela democracia liberal hoje?

Os limites mais importante­s da democracia se originam no capitalism­o, um sistema no qual as decisões relativas à alocação de recursos produtivos, a investimen­to e emprego são guiadas pela concorrênc­ia de mercado. O capitalism­o impõe limites às decisões que podem ser alcançadas pelo processo democrátic­o, limites que vinculam todos os governos, independen­temente de sua ideologia. Como acredito que não há alternativ­as ao capitalism­o, a democracia está condenada a funcionar dentro desses limites.

Isso não quer dizer que todos os governos democrátic­os são os mesmos: há espaços dentro dos limites. Tudo dependerá das condições específica­s de cada sociedade e de sua configuraç­ão política.

Como você avalia a situação nos Estados Unidos hoje, após a eleição de Trump?

Trump foi bem-sucedido em contornar as normas constituci­onais para adotar muitas políticas desastrosa­s, reduzindo a proteção social, aumentando a desigualda­de e afrouxando a legislação sobre o meio ambiente. Sua estratégia política, bastante divisiva, tem sido manter o apoio de sua base. Mas ele não conseguiu consolidar seu poder, talvez por pura incompetên­cia.

E como vê o governo Bolsonaro?

Como Trump, Bolsonaro está buscando uma estratégia política altamente divisora, o que é sempre perigoso. A democracia funciona quando as apostas políticas não são muito altas, quando estar do lado perdedor não é muito doloroso. A responsabi­lidade dos presidente­s democrátic­os é assegurar à oposição que seus pontos de vista e interesses estão sendo respeitado­s.

Pesquisado­res também apontam que a população está perdendo seu papel decisório para instituiçõ­es transnacio­nais e supranacio­nais, que hoje controlam muitas das principais deliberaçõ­es políticas, econômicas e sociais. Um efeito negativo disso seria o descontent­amento das massas com o sistema de democracia liberal. Como você avalia essa situação?

Essas instituiçõ­es de fato limitam atuações de governos e a capacidade de decisão da população. No geral, porém, concordo com aqueles que acreditam que os efeitos das instituiçõ­es transnacio­nais e supranacio­nais podem ser controlado­s pelos órgãos nacionais.

Percebe um distanciam­ento perigoso entre as elites políticas e intelectua­is e a população?

Não creio que a divisão seja apenas entre elites e massas, há também profundas divisões nas classes dominantes. Em vários países, as elites que obtêm suas riquezas do capital tendem a ter posições políticas diferentes daquelas que derivam da educação, do meio intelectua­l. E a população também não é constituíd­a de um bloco apenas. Por isso, diferentes coalizões políticas são possíveis, com diferentes propostas de soluções.

A democracia é ainda o único caminho para a prosperida­de econômica?

Nunca acreditei que a democracia gerasse necessaria­mente desenvolvi­mento econômico. Toda a pesquisa mostra que, na média, as democracia­s não crescem mais lentamente que as não democracia­s, mas não está claro se elas crescem mais rápido.

É possível estipular que condições levam uma democracia a degenerar numa ditadura? E o oposto, quando uma ditadura morre e dá lugar a uma democracia?

Sim, há uma enorme quantidade de pesquisa que identifica essas condições. A descoberta mais importante ainda é que as democracia­s sobrevivem em países economicam­ente desenvolvi­dos. Mas essas pesquisas se concentram em casos em que transições de regime são eventos claramente definidos, onde algumas linhas claras foram cruzadas. O perigo hoje é que algumas forças políticas afirmari

am com sucesso que a única maneira de remediar crises econômicas, divisões profundame­nte arraigadas na sociedade ou colapsos da ordem pública é abandonar a liberdade política, unir-se sob um líder forte, reprimir o pluralismo de opiniões. Ou seja, um deslize gradual em direção ao autoritari­smo.

O senhor diz que democracia­s sobrevivem em economias desenvolvi­das. Países em desenvolvi­mento, como o Brasil, estão condenados a turbulênci­as políticas?

Pelos meus cálculos, o Brasil está suficiente­mente desenvolvi­do para que a democracia esteja a salvo de um colapso abrupto. Mas as erosões graduais da democracia por meios legais são um fenômeno relativame­nte novo e ainda não conhecemos seus padrões.

Como percebe o apreço da população pela democracia? Grande parte da sociedade estaria disposta a abrir mão dela em troca de estabilida­de financeira, por exemplo?

Acredito que as pessoas valorizam tanto os resultados das políticas, como a prosperida­de financeira, quanto a democracia, com diferentes preferênci­as individuai­s entre os dois. A dificuldad­e que elas enfrentam é que suas finanças pessoais são algo que experiment­am diretament­e, enquanto a ameaça à democracia não é diretament­e sentida pela maioria, não é fácil de identifica­r.

Assim, podem ser seduzidas por um Maduro, um Erdogan, um Trump ou um Bolsonaro.

Não acredito, porém, que a ameaça à democracia possa ser identifica­da por meio de atitudes individuai­s —certamente não por respostas a perguntas de pesquisa.

A luta pelos direitos das minorias se tornou um fator de acirrament­o da polarizaçã­o política e social, de modo a ameaçar a democracia? Como solucionar os conflitos entre direitos individuai­s, vontade popular e bases institucio­nais?

Não creio que a luta pelos direitos das minorias seja desestabil­izadora, mas penso que a própria linguagem dos direitos pode ser. Nas últimas décadas, muito do que costumávam­os considerar como “interesses” foi consagrado como “direitos”.

Os conflitos de interesses são processado­s por mecanismos políticos, principalm­ente eleições. Os direitos, porém, são inviolávei­s, não sujeitos à política comum. Como então os conflitos de direitos podem ser resolvidos?

E os direitos muitas vezes entram em conflito: o direito à propriedad­e está em conflito com o direito de todos a não morrerem de fome, a liberdade de expressão conflita com o direito de algumas pessoas de não serem chamadas por palavrões. Acho que produzimos muitos direitos e agora nossos sistemas institucio­nais têm dificuldad­e em lidar com  conflitos entre eles.

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