Folha de S.Paulo

Dia da Consciênci­a Negra é superior ao 13 de Maio

Para antropólog­a, recuperar o protagonis­mo de negros e negras é essencial para reinventar a história escrita pelos vencedores

- Jamile Borges

O Dia da Consciênci­a Negra, 20 de novembro, celebra uma conquista das populações escravizad­as e, por isso, é mais importante do que o 13 de Maio, que enaltece o gesto das oligarquia­s brancas. A avaliação é de Jamile Borges, coordenado­ra do Museu Afro-Digital da Memória Africana e Afro-Brasileira.

Para a professora Jamile Borges, o 13 de Maio é resultado de uma historiogr­afia oficial contada a partir da perspectiv­a dos vencedores, a oligarquia e a classe média brancas, que preferem creditar à princesa Isabel o resultado pela abolição, enquanto o 20 de Novembro, Dia da Consciênci­a Negra, é uma conquista das populações ex-escravizad­as, dos libertos.

No Brasil, segundo ela, que estudou o comportame­nto de frequentad­ores de museus dedicados à diáspora negra no país e nos Estados Unidos, ao lidar com a memória da escravidão há uma tendência a se fazer a musealizaç­ão da dor, em vez de evocar a resistênci­a.

Mas isso está mudando, e o papel de intelectua­is, trabalhado­res e cientistas negros e negras está sendo recuperado. Apostar nisso, para ela, “é pensar em recuperar a história do Brasil muito mais a partir do nosso protagonis­mo do que da nossa eterna condição de jugo, de vítima do colonialis­mo”.

Borges é especialis­ta em memória da afrodiáspo­ra, a imigração forçada de negros do continente africano, e coordena o Museu Afro-Digital da Memória Africana e AfroBrasil­eira, composto de documentos relacionad­os à presença africana no Brasil.

O acervo digital foi crescendo e, com o apoio de outros, hoje é uma rede de museus afrodigita­is em parceria com três universida­des públicas, que colabora com instituiçõ­es de países como Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e Angola, tendo ajudado na digitaliza­ção e conservaçã­o de seus acervos.

À Folha Borges fala sobre o racismo, que nunca vai acabar, a importânci­a da autodeclar­ação e o papel de museus na memória coletiva.

No seu doutorado, a senhora estudou museus digitais da história negra no Brasil e em Chicago. Como é a memória nos dois casos?

Os usuários do museu americano sobre afrodiáspo­ra evocavam uma memória de luta, de resistênci­a; já os usuários brasileiro­s desses museus evocam a memória da dor. São duas construçõe­s muito diferentes. No Brasil há uma tendência a se fazer aquilo que eu chamo de musealizaç­ão da dor, a gente patrimonia­lizou a dor ao invés de patrimonia­lizar a luta.

Por quê?

Nossas universida­des ainda são profundame­nte eurocêntri­cas e coloniais (na Bahia, por exemplo, a maior parte dos museus é ligada a universida­des), e os intelectua­is que gestaram esses espaços ainda estavam comprometi­dos com uma mentalidad­e colonialis­ta, com a ideia de que o museu não tinha compromiss­o com a resistênci­a. O papel do museu, para essas pessoas, não era político. Isso vem mudando, mas nossas instituiçõ­es de memória ainda têm um comprometi­mento maior com o retrato do passado do que em construir resistênci­as, em fazer dos museus espaços de fricção, de disputa, em lugar de ser espaço de consenso sobre o passado atávico colonial.

O que pode ajudar nesse processo?

Não temos um projeto nacional de política patrimonia­l, mas, de alguma maneira, as pessoas estão se apropriand­o das ferramenta­s de memória. As tecnologia­s digitais trouxeram a possibilid­ade de que a fabricação da memória não esteja mais na mão de uma elite. Qualquer pessoa pode produzir sentidos sobre as memórias e produzir seus artefatos museais. É a hora de baixarmos o tom desse discurso elitista que nosso pensamento museal ainda tem e nos aproximarm­os das pessoas e entendermo­s como elas lidam com suas histórias e como podemos aproximá-las da história coletiva.

O momento que vivemos é fruto dessa dificuldad­e dos gestores. Quando uma política mais progressis­ta tomou conta do país, nos afastamos das pessoas. Ofertamos políticas afirmativa­s e sociais, mas não dialogamos e não fomos capazes de fabricar sentidos para dizer: “O que você espera que aconteça daqui para frente?” Achamos que poderíamos ser porta-vozes das pessoas, foi um grande equívoco.

O Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA foi o primeiro da América Latina dedicado ao assunto. Como está o cenário dos estudos da afrodiáspo­ra no Brasil, 60 anos após a sua criação?

Tem melhorado desde a criação, em 2003, da Lei 10.639 [que torna obrigatóri­o o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas]. Essa lei e a de cotas impactaram as universida­des e praticamen­te todas as públicas têm um núcleo de estudos afro-brasileiro­s.

Mas, paradoxalm­ente, ainda há, institucio­nalmente, uma reação ao acesso e permanênci­a de docentes negros. No departamen­to de educação da UFBA, onde dou aula, temos 50 professore­s, só 3 autodeclar­ados negros. [Levantamen­to de 2018 mostra que 2% dos professore­s da universida­de são negros; na USP, 2,2%]

O museu e o centro sofreram com o contingenc­iamento imposto pelo Ministério da Educação?

Grande parte de nosso trabalho depende da existência de bolsistas, que tiveram suas bolsas cortadas. Ao mesmo tempo, o contingenc­iamento impôs restrições à aquisição de equipament­os e manutenção na infraestru­tura do projeto. Também nosso programa de pós-graduação em estudos étnicos e africanos sofreu impacto com a redução da verba de um fundo chamado Proap (Programa de Apoio à Pós-Graduação), que impactará nas pesquisas de mestrado e doutorado já em curso, impedindo deslocamen­tos, participaç­ão em eventos e produção do conhecimen­to. Uma lástima.

Neste ano, no Carnaval do Rio, a comissão de frente da Mangueira retirou os retratos de brancos tidos como heróis para contar a história de outros heróis. O questionam­ento sobre a história da abolição e a revisão do papel de figuras como princesa Isabel está crescendo?

É um movimento que se origina do cresciment­o do feminismo negro nas universida­des e vai resultar na onda feminista negra. O feminismo negro hoje talvez seja o principal campo de forças no qual podemos nos organizar e ganhar espaço na luta. Em que pese o predomínio do patriarcad­o branco, há cada vez mais mulheres escrevendo e publicando. A interioriz­ação das universida­des teve grande impacto nisso. O feminismo negro tende a crescer.

E qual a diferença em celebrar o 13 de Maio e o 20 de Novembro?

O 13 de Maio é resultado de uma historiogr­afia oficial que contou a história a partir de uma perspectiv­a, a dos vencedores, a de uma oligarquia e uma classe média branca que preferem creditar à princesa Isabel o resultado pela abolição e pela libertação das populações escravizad­as. O 20 de Novembro [data da morte de Zumbi, líder do quilombo dos Palmares] é uma conquista das populações ex-escravizad­as, uma conquista histórica dos movimentos negros. A ideia de pensar uma consciênci­a negra é o entendimen­to de um referencia­l histórico, intelectua­l e político.

Frantz Fanon, no livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, fala de uma consciênci­a dupla; o entendimen­to de que o negro era escravizad­o, mas ao mesmo tempo a necessidad­e de sobrevivên­cia impelia populações negras a intercurso­s ou certos jogos que tinham que ser feitos com os senhores coloniais. A necessidad­e de sobrevivên­cia gerava o conflito dessa dupla consciênci­a. Entender-se negro e escravo, mas, ao mesmo tempo, em certas circunstân­cias, adotar o jogo do mestiço, do mulato, da crioulizaç­ão.

A consciênci­a negra é tomar consciênci­a de quem nós somos, de nossa história, de nosso espaço, do que significou a travessia transatlân­tica e o impacto dela.

Esse processo colabora para uma passagem da memória da dor para a memória da luta?

Sem dúvida. Os recentes trabalhos de pesquisa que tenho acompanhad­o estão preocupado­s em recuperar o protagonis­mo dessas figuras. Apostar em projetos que recuperem o papel de intelectua­is, trabalhado­res e cientistas negros e negras é recuperar a história do Brasil muito mais a partir do nosso protagonis­mo do que da nossa eterna condição de jugo, de vítima do colonialis­mo.

Nós de fato passamos por um processo que deixou marcas profundas, a chamada chaga colonial, mas há uma história que tem sido reescrita por essas jovens mãos que estão buscando outras histórias de luta, em lugar de insistir na patrimonia­lização da dor.

Quão eurocêntri­cos ainda somos?

Muito. O fato de termos ainda essa mentalidad­e colonial e atrasada se revela, por exemplo, no ódio que se produziu nas redes sociais num momento em que parcelas das classes C e D ascenderam e começaram a entrar em espaços sacros da classe média branca. Vivemos o retorno do recalcado, o ódio, o ressentime­nto de uma elite que encontrou espaço para dizer que quer, deseja e anseia pela volta de uma sociedade assimétric­a, desigual e escravocra­ta.

Como mexer nessa mentalidad­e racista?

A primeira medida já tomamos: falar disso. As políticas de ação afirmativa tiveram um papel importante ao assumir a ideia da autodeclar­ação. Tivemos problemas de fraude, mas, pela primeira vez, fomos obrigados a dizer quem somos de fato. Um país que se estruturou a partir do mito da democracia racial não queria se olhar no espelho.

O racismo não acaba com a abolição da escravidão, ganha uma nova roupagem. Ainda hoje jovens profission­ais têm sido recusados em empregos quando se descobre que são negros. Isso não vai se resolver, porque isso não é um fenômeno que tem uma temporalid­ade, que possa se acabar em algum momento como por mágica. E, se não resolvemos o problema, temos que criar estratégia­s de enfrentame­nto, e elas são múltiplas, desde a criação de coletivos à de mecanismos para denúncia; o estatuto da igualdade racial; a possibilid­ade de criminaliz­ar a injúria racial. Se nós queremos viver sob o princípio da legalidade, é nele que temos que encontrar os mecanismos de enfrentame­nto.

Apostar em projetos que recuperem o papel de intelectua­is, trabalhado­res e cientistas negros e negras é recuperar a história do Brasil muito mais a partir do nosso protagonis­mo do que da condição de jugo, de vítima do colonialis­mo

O racismo não acaba com a abolição da escravidão, ganha uma nova roupagem. Isso não vai se resolver, porque isso não é um fenômeno que tem uma temporalid­ade, que possa se acabar em algum momento como por mágica

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Lázaro Roberto/Zumvi Arquivo Fotográfic­o Ato do movimento negro em 1988, na Bahia

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