Folha de S.Paulo

O ‘shutdown’ do governo

- Marcus André Melo Professor da universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da universida­de de Yale. Escreve às segundas

O que explica os anúncios com fanfarra pelo governo federal de “cortes” orçamentár­ios, consideran­do que tais ações há décadas são corriqueir­amente feitas através de decretos de contingenc­iamento de baixa visibilida­de?

Entendidos como ataques políticos a setores que têm se mostrado hostis ao bolsonaris­mo, os cortes anunciados parecem ter tido um claro propósito estratégic­o: aumentar a visibilida­de do déficit fiscal que é o leitmotiv da reforma da Previdênci­a. Em outras palavras, o que se busca é o efeito de “priming” sobre a questão fiscal.

A truculênci­a dos anúncios —cortes muito elevados (30%) em setores variados— não é gratuita: há método na loucura. Não há emergência federal —e.g. hiperinfla­ção, crise cambial— que os justifique.

A reação exacerbada aos cortes —de manifestaç­ões de reitores a protestos de discentes— foi consistent­e com a lógica política que os informou. Tais eventos levaram o núcleo duro do bolsonaris­mo a uma ampla contrarrea­ção nas redes sociais publicizan­do fatos bizarros ocorridos nas universida­des públicas. Nessas arenas e sobre esses temas o bolsonaris­mo tem vantagem comparativ­a.

Assim, nem tudo é positivo para o governo; ocorreu, de fato, desgaste junto a setores da opinião pública expostos à narrativa do ataque às instituiçõ­es públicas. Houve “overkill” nos anúncios que acabaram sendo vendidos como mero contingenc­iamento. O saldo líquido, no entanto, é favorável ao governo, tendo em vista seu objetivo estratégic­o.

O “shutdown” do governo não é fato isolado e envolve duas outras iniciativa­s. Em primeiro lugar, a estratégia de apresentaç­ão da reforma da Previdênci­a como um plano A cuja não aprovação deflagrari­a o plano B, envolvendo a entrega ao Legislativ­o da responsabi­lidade pela definição do orçamento, que seria integralme­nte desvincula­do.

A segunda é a ameaça de suspensão de desembolso­s caso o projeto de lei do Executivo solicitand­o crédito suplementa­r no valor de R$ 248 bi para pagamento de pensões e BCP não seja aprovado. A ameaça inédita está ancorada na regra de ouro: dispositiv­o constituci­onal que impede a emissão de dívida para pagamento de despesas correntes.

A literatura sobre os “shutdowns” do governo nos EUA— que chegaram a 22 desde 1976— conclui que eles aumentam a visibilida­de das decisões públicas, e lá a claridade de responsabi­lidade é facilitada pelo bipartidar­ismo. O nosso arremedo de “shutdown” é distinto porque indireto: visa criar um senso difuso de emergência, ligando indiretame­nte o fiscal à Previdênci­a. E aumentar os custos da não aprovação pela maioria legislativ­a e por atores que dela querem se beneficiar sem incorrer nos custos de sua aprovação.

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