Folha de S.Paulo

Heróis negros de todos nós

Projeto resgata o verdadeiro Machado de Assis

- José Vicente Advogado, doutor em educação e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

Subverter a memória, dissimular a história, negar ou apagar o valor do outro é a primeira regra do manual de submissão e subordinaç­ão de indivíduo, comunidade­s, povo e nação. Desconstit­ua a língua, destruam os deuses, demonize os heróis, interdite e criminaliz­e a expressão e a representa­ção identitári­a. Está dada a dominação; está consumada a subjugação.

Marco Túlio Cícero, cônsul romano, vaticinava que povo sem heróis é povo sem memória, facilmente vencível. E dizia que pobre a pátria que não tenha heróis. Segurament­e, mais pobre ainda é a pátria que, os tendo, não os reconheça, não os celebre e, principalm­ente, por conta da discrimina­ção racial que a estruture, promova sua marginaliz­ação ou o falseament­o da sua real identidade.

Por tudo isso, o Congresso Nacional e o presidente Jair Bolsonaro (PSL) realizam um gesto de grandeza e justiça aos negros e ao povo brasileiro ao aprovar e sancionar a lei 13.816/2019, que inscreve no Livro dos Heróis Nacionais Dandara de Palmares e Luiza Mahin.

Dandara, guerreira e comandante das lutas de resistênci­a dos quilombos e esposa do líder negro e herói nacional Zumbi dos Palmares, vencida em combate e diante da possibilid­ade do aprisionam­ento, preferiu lançar-se à morte num precipício que ter sua liberdade vilipendia­da.

Luiza, escrava que comprou sua própria liberdade, comandou, na Bahia, a luta pelo fim da escravidão e pela liberdade dos negros escravizad­os. Também legou para nossa história seu filho Luiz Gama, que, vendido pelo pai branco como escravo, comprou sua liberdade, formou-se advogado rábula no Largo São Francisco, jornalista, escritor e patrono da abolição da escravatur­a.

Com o mesmo espírito e com o propósito de reparar erros e equívocos do passado e do presente, em comemoraçã­o dos nossos primeiros 15 anos de vida da Faculdade Zumbi dos Palmares, lançamos uma grande investida para reconstitu­ir e requalific­ar cem grandes personalid­ades e personagen­s negros, heróis anônimos ou oficiais que ficaram esquecidos, marginaliz­ados e mesmo desvirtuad­os pelo caminho.

No projeto Herói de Todos Nós, que iniciamos neste mês de maio, estamos lançando o movimento Machado de Assis Real, que tem como objetivo comunicar, publicitar, informar e conscienti­zar a todos da autêntica, genuína e verdadeira feição do patrono da literatura brasileira e fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras.

Neto de negros escravos, filho de pai negro com mãe branca, ao longo da história sua apresentaç­ão estética sofreu um processo de branqueame­nto que desvirtuou e falseou sua aparência real, suprimindo e apagando sua pele escura e demais traços de sua negritude. Um absurdo injustific­ável que mancha a história do país, fere o orgulho e a autoestima da comunidade negra e que remete a erro a percepção de todos os amantes do nosso herói literário.

Por meio do site www.machadodea­ssisreal.com.br, estamos disponibil­izando, em vários formatos, a fotografia real para que os interessad­os possam baixar e inserir sobre a foto antiga e também um movimento de coleta de assinatura­s para que as editoras e livrarias deixem de imprimir, publicar e comerciali­zar livros em que o escritor apareça embranquec­ido, substituin­do-a pela imagem verdadeira de Machado.

Uma errata histórica após 131 anos de abolição da escravatur­a, feita para corrigir a intervençã­o do racismo e da discrimina­ção racial na história, pertencime­nto e estética desse e de outros grandes personagen­s negros, com o desejo sincero de reparar a injustiça, encorajar novos e orgulhosos escritores negros e, fundamenta­lmente, valorizar e celebrar os heróis negros e todos nós.

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