Folha de S.Paulo

O Cade, o Banco Central e a ‘guerra das maquininha­s’

Não se pode admitir abuso do poder econômico

- Priscila Brolio Gonçalves Mestre e doutora em direito comercial pela USP e sócia de Brolio Gonçalves Advogados

Algumas instituiçõ­es financeira­s anunciaram, recentemen­te, uma política de “taxa zero” para antecipar recebíveis. Longe de comemorar a notícia, vendida como “acirrament­o da concorrênc­ia”, o Cade (Conselho Administra­tivo de Defesa Econômica) instaurou uma investigaç­ão.

Espera-se mais uma batalha da “guerra das maquininha­s”, como é chamada a disputa entre bancos tradiciona­is e novas empresas de pagamentos pelos serviços de credenciam­ento. Estes consistem na captação de estabeleci­mentos comerciais, habilitand­o-os a oferecer aos consumidor­es opções de pagamento. Hoje isso é feito por meio de terminais, as maquininha­s.

No Brasil do início dos anos 2000, a atividade de credenciam­ento era um duopólio controlado por grandes bancos, que mantinham exclusivid­ade com as principais bandeiras de cartão. A maior fonte de receita das credenciad­oras eram aluguéis cobrados pelo uso das máquinas.

Desde então, o mercado brasileiro de pagamentos sofreu importante­s mudanças. Após diagnostic­arem os principais problemas do setor, o Cade e o Banco Central (Bacen) trabalhara­m para a quebra da exclusivid­ade entre bancos e bandeiras, buscando fomentar a concorrênc­ia.

O duopólio no credenciam­ento não foi logo quebrado. Afinal, os bancos exerciam controle comercial sobre as bandeiras, pois eram os maiores emissores dos cartões. Logo surgiram novos modelos de negócio, como a venda de maquininha­s, substituin­do os altos custos com aluguéis.

A concorrênc­ia foi efetivamen­te viabilizad­a quando o Bacen reconheceu os arranjos de moeda eletrônica, baseados na criação de uma conta digital de pagamento, que permite ao cliente receber pelas suas vendas independen­temente de possuir conta bancária. Foi uma verdadeira revolução, já que no Brasil há atualmente cerca de 15 milhões de “desbancari­zados”.

Gratuitas ou mais baratas do que contas tradiciona­is, as digitais permitem que os estabeleci­mentos recebam pagamentos por cartões, boletos, TEDs e transferên­cias, diminuindo o uso de dinheiro de papel e aumentando o leque de opções de recebiment­o. Não há vinculação à atividade de credenciam­ento.

Para estimular o modelo disruptivo, o Bacen determinou que as contas digitais pré-pagas, por não implicarem risco monetário, fossem operadas sem trânsito pela rede bancária, através de arranjos de pagamento das próprias fintechs (que, ao contrário dos bancos, não podem atuar no mercado financeiro com o dinheiro do cliente e captar depósitos para obter receitas).

Baseado em tecnologia, o modelo trouxe custo menores, incentivan­do micro e pequenos estabeleci­mentos (sem conta bancária ou interesse em pagar altas taxas) a aceitar diferentes meios de pagamento. Gerou inovação e inclusão social, além de concorrênc­ia aos bancos, que ainda concentram grande parte do mercado de pagamentos e serviços financeiro­s.

É natural que as empresas instaladas reajam, copiando ou buscando novas soluções. O que não se admite é o abuso do poder econômico. Assim, são vedadas práticas restritiva­s da concorrênc­ia, amparadas no poder econômico de conglomera­dos que atuam em todos os elos da cadeia (emissão, instituiçã­o domicílio, credenciam­ento e bandeiras).

A questão que se coloca ao Cade é se descontos condiciona­dos e outras formas de privilegia­r os serviços bancários constituem defesa legítima do modelo de negócio tradiciona­l ou ultrapassa­m os limites do que é concorrenc­ialmente aceitável.

Haverá, certamente, inúmeras disputas neste campo. No momento, o que importa é saber que Cade e Bacen mantêm-se vigilantes e firmes em seus papéis, tutelando a concorrênc­ia e a inovação, para o benefício de todos.

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