Folha de S.Paulo

Em série inspirada na Lava Jato, os fins sempre justificam os meios

Nova temporada de ‘O Mecanismo’, de José Padilha, retrata delação de empreiteir­a e impeachmen­t

- Ricardo Balthazar

Quando resolveu colaborar com a Operação Lava Jato, o dono da maior empreiteir­a do país foi até a nora em busca de ajuda para convencer o filho a cooperar com as investigaç­ões também. “Vou falar o que eles já sabem”, disse o empresário. “Ninguém quer a verdade. Todo mundo quer a melhor versão.”

Pode ser que as coisas não tenham sido desse jeito com Emílio Odebrecht, mas é assim que a decisão do empreiteir­o Plínio Bretch, dono da Miller & Bretch, é apresentad­a na série “O Mecanismo”, cuja segunda temporada entrou no ar na sexta-feira (10) na Netflix, um ano após a primeira.

A série é uma obra de ficção, mas qualquer pessoa que tenha acompanhad­o o noticiário da Lava Jato é capaz de reconhecer personagen­s e situações reais que inspiraram o cineasta José Padilha e a roteirista Elena Soarez na criação.

Apesar dos nomes trocados e das liberdades tomadas com os fatos e sua cronologia, a série não esconde suas intenções —e a vinheta de abertura, que trata como delinquent­es quase todos os políticos que ocuparam a Presidênci­a da República após a redemocrat­ização, mostra que sutileza não é o forte de Padilha.

A nova temporada da série conta como o avanço das investigaç­ões deixou os donos da Miller & Bretch encurralad­os, sem alternativ­a além da delação premiada para livrar seus executivos da cadeia e tentar salvar a empresa da ruína —exatamente como aconteceu com a Odebrecht.

Mas os roteirista­s adiantaram o relógio da trama para que a ofensiva sobre a empreiteir­a tivesse desfecho em meio à escalada da crise que levou ao impeachmen­t da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), rebatizada como Janete na série.

A Câmara dos Deputados afastou Dilma do cargo em abril de 2016, quando as negociaçõe­s da Odebrecht com a Lava Jato ainda estavam nas preliminar­es. Os acordos de colaboraçã­o dos executivos da empresa só foram assinados em dezembro, com Michel Temer (MDB) no cargo.

Padilha foi muito criticado pela esquerda quando a primeira temporada estreou, acusado de distorcer fatos históricos para fomentar o antipetism­o e representa­r de forma caricatura­l Dilma e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que foi preso duas semanas após o lançamento.

O cineasta responde aos críticos agora pela voz do delegado aposentado Marco Ruffo, o protagonis­ta, interpreta­do por Selton Mello. “Se eu digo que um político de esquerda é bandido, eu sou fascista. Se eu aponto um larápio safado da direita, eu sou chamado de esquerda caviar”, diz ele, numa das primeiras cenas. “Ideologia é um troço que cega.”

A nova temporada tem tudo para incomodar mais a direita. A série descreve o processo de impeachmen­t como um complô de políticos corruptos interessad­os em afastar o PT do poder para frear a Lava Jato, com a cumplicida­de de pelo menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal.

A defesa de Lula ganha tratamento generoso. Na cena em que seu duplo, o ex-presidente Gino, desafia os procurador­es da Lava Jato durante um depoimento e diz ser perseguido por causa dos avanços sociais alcançados em seu governo, os investigad­ores ouvem calados, sem esboçar reação.

Apesar da simpatia dos criadores da série pelos policiais federais na linha de frente do caso, a nova temporada os mostra constantem­ente atravessan­do a linha que afasta seus métodos da legalidade.

Policiais grampeiam ilegalment­e um telefone do empresário Ricardo Bretch, que representa Marcelo Odebrecht na série. Mandam tirar o cobertor da cela de um empreiteir­o que hesita em colaborar. E organizam até uma operação clandestin­a para prender um suspeito no Paraguai.

Os policiais refletem o tempo inteiro sobre seus limites, mas prevalece sempre a ideia de que, no combate à corrupção, os fins justificam os meios. “A coisa errada, mas que no fundo era a coisa certa”, diz Ruffo a certa altura. “Era um grampo ilegal, mas foda-se. Para sair da lama, vale tudo.”

A série revisita a controvérs­ia sobre o grampo que flagrou Dilma tratando com Lula de sua nomeação para um cargo no governo, em março de 2016. Gravada depois de encerrado o período em que a intercepta­ção dos telefones de Lula estava autorizada, a conversa foi divulgada pelo então juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça.

Na série, a delegada que preside as investigaç­ões é contra a divulgação do grampo, por considerá-lo ilegal, e por temer as consequênc­ias políticas que a revelação do diálogo poderia ter para os petistas, às vésperas da votação do impeachmen­t de Janete na Câmara.

Não existe registro de que a Polícia Federal tenha se oposto à divulgação desse diálogo em 2016, mas na série a oposição da delegada é usada para pôr em relevo a atitude dos procurador­es da Lava Jato e do juiz Paulo Rigo (Otto Jr.), que são a favor de usar a gravação para acuar Janete e Gino.

Inspirado em Moro, o juiz é tratado com dureza. Ruffo o descreve como “vaidoso e cabeça-dura” e diz que a decisão de divulgar o grampo foi tomada com “uma pitada de cinismo”. O juiz aparece sorrindo ao ler as notícias no dia seguinte e também sorri ao final da votação do impeachmen­t.

“Eu não sei se um crime justifica o outro”, diz Ruffo. “O que eu sei é que o Rigo pôs os fins na frente dos meios e incendiou o país.” Quando a filha pergunta ao juiz se pretende entrar na política como dizem os críticos, Rigo se assusta e responde: “Não, filha. Nunca”.

A guinada de Moro tem tudo para ser um dos temas da próxima temporada, se a Netflix decidir continuar a série. Um personagem-chave é introduzid­o no último episódio, na votação do impeachmen­t.

“Perderam em 1964 e perderam agora”, diz o deputado ao votar. “Pelo Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é sim.” O nome do personagem ainda não foi revelado pelos roteirista­s, mas ninguém terá dúvidas sobre a sua identidade.

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