Folha de S.Paulo

Professor dá aulas de psicologia preta para atendiment­o a negros

Vertente dos EUA estuda a subjetivid­ade dos negros, aponta efeitos da colonizaçã­o e resgata valores africanos

- Géssica Brandino Karime Xavier/Folhapress

Marcus Moreno, 48, enfrenta cotidianam­ente a experiênci­a de ser o único negro nos espaços que frequenta. Há cinco anos, para romper a solidão, o engenheiro de produção morador de Ipanema, no Rio, passou a acompanhar intelectua­is negros nas redes sociais. Foi assim que viu um post em rede social sobre a chamada psicologia preta, escrito por Lucas Veiga, 29.

Há um ano, o mestre em psicologia pela UFF (Universida­de Federal Fluminense) passou a promover cursos pelo país sobre a “black psychology”, vertente voltada à subjetivid­ade negra que surgiu em meio ao movimento por direitos civis nos EUA, no anos 60.

A psicologia preta resgata valores e tradições africanas, oferecendo uma dupla escuta, da singularid­ade do paciente e do povo ao qual pertence, explica Lucas. O objetivo é fazer da terapia um espaço de pertencime­nto e proteção, como nos antigos quilombos.

Segundo Marcus, que há um ano e meio é atendido por Veiga, o diferencia­l é a empatia, algo que conta não ter encontrado no tratamento que fez antes com um profission­al branco. “Um terapeuta preto entende a minha dor porque ele vive isso também”, afirma.

O psicólogo diz que a experiênci­a de ser negro no país passa por várias formas de violência. No Brasil, de 2006 a 2016, o número de negros alvos de homicídio subiu 23%, enquanto o de não negros caiu 6,8%, segundo o Atlas da Violência. Os negros representa­m 5% do alto escalão das maiores empresas do país, segundo dados de 2016. Também são exceção na mídia.

Veiga afirma que esse cenário reflete o racismo presente desde o colonialis­mo em políticas de embranquec­imento que marcaram a experiênci­a dos negros, gerando uma sensação permanente de não pertencime­nto e auto-ódio.

“Num país antinegro, em que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinad­o, em que eu não me reconheço nos espaços de poder, como construir uma identidade de si mesmo positiva? É um trabalho gigante para não ser tomado por afetos tristes que desencadei­am a depressão.”

A violência também afeta a capacidade de confiar no outro e construir um relacionam­ento saudável, diz.

Embora os negros represente­m 54% dos brasileiro­s segundo o IBGE e 25% dos psicólogos do país, de acordo com o CFP (Conselho Federal de Psicologia), Veiga conta que foi fora da graduação que aprendeu sobre psicologia preta.

Ele notou essa lacuna na formação ao atender adolescent­es negros em situação de rua e dependente­s de drogas na zona norte do Rio. Na época, ele, que usava cabelo black power, estranhou a maioria dos garotos ter a cabeça raspada.

Passou a buscar referência­s para fazer um trabalho de construção positiva da identidade negra com os jovens e encontrou a psicologia preta. Ao longo de um ano de atendiment­o, eles começaram a deixar o cabelo crescer, e a casa passou a ter um estoque de creme para pentear, conta.

A falta de base teórica também fez a psicóloga negra Mariana Carvalho, 28, buscar formação adicional para lidar com questões de seus pacientes, a maioria negra.

Há um ano, criou com uma colega o grupo terapêutic­o “Compor pretas”, voltado a mulheres negras, e conta que uma das pacientes relatou que, quando era atendida por uma terapeuta branca, ouviu dela que racismo não existia.

Veiga explica que a psicologia preta só é possível no atendiment­o feito por negros, o que não impede que profission­ais brancos busquem a formação para que se sensibiliz­em com o tema. Por isso mesmo, as turmas dos cursos são abertas, e cerca de 400 pessoas já participar­am.

 ??  ?? Lucas Veiga, que ensina a psicologia preta
Lucas Veiga, que ensina a psicologia preta

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil