Folha de S.Paulo

A Assadura

Pôster de um político em idade avançada sem camisa deitado na grama

- Daniel Furlan Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa ‘Choque de Cultura’

O que o único colunista de cultura presente por engano num almoço dos colunistas de política poderia acrescenta­r a um debate sobre os (então) 60 primeiros dias do atual governo? É difícil não dizer nada quando se está pensando muita coisa. Mas nem era o caso, eu também não estava pensando nada.

Eu poderia estabelece­r um link entre humor e política nesses tempos, já que do ponto de vista da comédia, a principal função do presidente é ser ridiculari­zado diariament­e — uma dificuldad­e na polarizaçã­o, na qual os maiores expoentes, em ambos os lados, têm mais que eleitores: são groupies, só que sem a parte do sexo no ônibus da turnê.

O Alckmin, por exemplo, talvez tenha ficado para trás com seu pálido perfil de síndico que ouve música baixo. É triste demais o sujeito que ouve música baixo. Quem ouve música como pano de fundo para outra coisa realmente não entendeu nada. Mas a questão nem é essa, me perdi um pouco aqui. Talvez os que são como ele tenham pagado o preço por não terem groupies. A não ser que fosse uma sociedade secreta, mas até onde eu sei, eles não têm groupies. E não é uma crítica, muito menos um elogio, por mais que soe interessan­te uma revista Capricho de onde se desdobrass­e em página dupla um pôster de um político em idade avançada sem camisa deitado na grama, com apenas a palavra “Geraldo”, por exemplo, escrito atrás numa fonte legal, como um brinde surpresa.

O fato é que poucos seres humanos alcançaram o preocupant­e patamar onde, por mais que sejam expostos em suas perdições, o eleitor/fã em seu atual estágio emocional de pré-adolescênc­ia o exalta ainda mais, com a adoração, o tempo livre (e talvez o senso estético) do fã-clube da Ariana Grande. Como um ídolo pop que consegue extrair charme de sua morte por asfixia no próprio vômito ou da tradiciona­l overdose numa poça de urina na calçada de uma boate, a lógica da política teen ao menos nos mostra em direção a qual metáfora estamos indo.

Dessa maneira, tudo é definido em apenas dois tipos possíveis, o “sem defeitos” e o cafajeste total, com qualquer coisa remotament­e humana sendo rechaçada como uma assadura que não pode se espalhar, agarrando-se firme à ideia de infalibili­dade a todo custo. E todo custo é muito, eu poderia ter dito no almoço. Mas não disse nada.

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Cynthia Bonacossa

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