Folha de S.Paulo

Perdão com sensatez

Com atraso, STF interrompe série de equívocos em torno do indulto natalino de 2017; legislação deve evoluir para privilegia­r penas alternativ­as rigorosas

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A respeito de celeuma em torno de indulto natalino.

Mais de um ano depois, o Supremo Tribunal Federal restabelec­eu alguma racionalid­ade na celeuma provocada pelo indulto de Natal assinado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em dezembro de 2017.

Por 7 votos a 4, os ministros concluíram que o chefe do Executivo tem a prerrogati­va de estabelece­r as regras para o perdão de condenados —e, logo, o decreto editado por Temer não feria a Constituiç­ão.

Tal entendimen­to singelo dispensari­a maiores análises e debates, não fosse o furor ativista do aparelho jurídico-policial do país.

É fato que o indulto daquele ano incorreu em generosida­des um tanto inconvenie­ntes, em especial por partirem de um governo enredado em suspeitas de corrupção. O texto permitiu libertar condenados que tivessem cumprido um quinto da pena —qualquer que fosse ela— e previu até remissão de multas.

Nota-se, de todo modo, que a liberalida­de das regras vinha crescendo nos últimos anos. Até meados da década passada, o benefício contemplav­a apenas condenados a menos de seis anos de prisão que já tivessem cumprido ao menos um terço da pena.

Em 2010, o limite subiu a 12 anos; em 2016, exigiu-se o cumpriment­o de um quarto da punição. O indulto passou a incomodar a forçataref­a da Lava Jato, para a qual havia indulgênci­a em excesso para criminosos do colarinho branco.

Com esse ponto de vista, a procurador­a-geral da República, Raquel Dodge, recorreu ao STF contra o decreto de 2017. Argumentou-se, afrontando a sensatez, que a medida —listada na Constituiç­ão entre as competênci­as do presidente da República— invadia atribuiçõe­s do Legislativ­o e do Judiciário.

A então presidente da corte, Cármen Lúcia, suspendeu a validade de trechos do diploma. Em março do ano passado, a invencioni­ce chegou ao cúmulo quando o relator do caso, Luís Roberto Barroso, decidiu mudar a redação do texto.

A sucessão de erros poderia ter acabado em novembro, quando em julgamento seis ministros do Supremo votaram pela validade do decreto. Luiz Fux, porém, apresentou um pedido de vista com aparência de manobra protelatór­ia.

Entende-se, é claro, a repulsa da opinião pública à corrupção e à impunidade. Entretanto o combate a tais mazelas por meio de casuísmos não apenas se mostra ineficaz a longo prazo como compromete a credibilid­ade das instituiçõ­es.

A prática do indulto se ampara em razões humanitári­as e no princípio de que condenados por faltas menos graves, tendo cumprido parte da pena e não representa­ndo ameaça, podem ser reintegrad­os à sociedade. Dada a superlotaç­ão dos presídios, onde facções criminosas recrutam mão de obra, trata-se de providênci­a racional.

Idealmente, para esta Folha ,a legislação deve evoluir para privilegia­r, tanto quanto possível, o uso de penas alternativ­as, desde que rigorosas o bastante para gerar o necessário efeito dissuasivo.

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