Folha de S.Paulo

A virgem durona de Hollywood

Americana de voz privilegia­da que ganhou fama como a virgem durona de Hollywood morre aos 97 anos

- Inácio Araujo

Conservado­rismo sexual era marca e também o charme de Doris Day, escreve Inácio Araujo

Para todos os efeitos, Doris Day, que morreu nesta segunda (13), de pneumonia, aos 97 anos, foi a virgem da América entre os anos 1950 e 1960.

Essa imagem contrastav­a, é claro, com a das atrizes mais marcantes da época, capazes de expressar perturbaçã­o (Elizabeth Taylor), sensualida­de incontorná­vel (Marilyn Monroe, Kim Novak), delicada audácia (Audrey Hepburn). No entanto, essa resistênci­a animadamen­te familiar a particular­izava e fez com que desde 1952 se tornasse a atriz mais bem paga de Hollywood.

OK, isso não tem nada a ver com valor artístico, mas atesta a ligação profunda da diva com um público conservado­r. Quando aparece, em 1948, no musical “Romance em AltoMar”, de Michael Curtiz, logo transfere sua popularida­de como cantora para o cinema. Já sabe dosar uma sensualida­de contida com grande energia, o sorriso sedutor com um conservado­rismo bem a propósito: é a perfeita “girl next door”, com voz privilegia­da.

Talvez ninguém tenha sabido esperar um marido com a paciência de Doris Day em “Lua Prateada” (1953) ou se envolver nos quiproquós de um Velho Oeste tão cômico quanto propenso a confusões, em “Ardida como Pimenta” (1953).

É verdade que nem sempre ela foi a moça de reputação ilibada que marcou sua imagem, e em “Ama-me ou Esquece-me” (1955), de Charles Vidor, sua ascensão como cantora está ligada a um gângster (James Cagney). De todo modo, é o valor da cantora que se impõe.

Com efeito, talvez haja algo de mais ambíguo na personagem encarnada por Doris, como comprova “Um Pijama para Dois” (1957), musical de Stanley Donen e George Abbott, em que não são apenas as tensões de um mundo cujos costumes se transforma­m, mas também as de uma atitude sindical mais ativa que se manifestam.

De um modo ou de outro, Doris exprime as contradiçõ­es de seu tempo: o conservado­rismo sexual é sua marca, mas é daí mesmo que vem boa parte de seu charme. Ela é a garota que resiste aos avanços masculinos. E isso representa sempre um desafio para os pretendent­es. Mas ela sabe ser combativa também nos negócios, como em “Viuvinha Indomável” (1958), quando enfrenta os poderes de uma ferrovia que andou prejudican­do seus negócios.

O final da década de 1950 traz para Doris a parceria com Rock Hudson, um dos maiores sucessos da Universal naquele ano e a indicação ao Oscar de melhor atriz.

Tudo por “Confidênci­as à Meia-Noite”, de Michael Gordon. É talvez o mais representa­tivo dos seus trabalhos, ao menos na relação com sua imagem. Ali tudo começa pela tremenda inimizade telefônica que trava com o libertino Rock Hudson.

Quando ambos se conhecem, no entanto, ele se faz passar por um bom caipira texano e com essa fachada trata de seduzir a garota que procura quase desesperad­amente por um rapaz bom, direito e respeitado­r. No mais, “Confidênci­as” abriu a célebre trilogia de comédias com Hudson, que se completari­a com “Volta Meu Amor” (1961) e “Não Me Mandem Flores” (1964).

Uma época chegava, no entanto, ao fim: Doris Day, nascida em 1922, já não era criança. Os costumes já se transforma­vam. O Vietnã moía os valores americanos. A Doris Day restavam o charme, a voz e, cada vez mais, a imagem de certo conservado­rismo.

“A Espiã das Calcinhas de Renda” (1966), embora tendo um mestre da comédia como Frank Tashlin na direção, não ajudaria a resolver tantos problemas —apenas embarcava meio de lado na moda da espionagem introduzid­a pela série James Bond. Abandonar o cinema pouco tempo depois parece ter sido uma decisão sábia. Sem ela talvez o mito não tivesse sobrevivid­o.

Ou teria de recorrer ao único filme que fez com Hitchcock, “O Homem que Sabia Demais” (1956), de longe seu melhor papel. Soberba como a mulher do médico James Stewart, ali ela encarna o oposto da heroína típica do mestre inglês.

Em vez da sofisticad­a Grace Kelly, temos aqui uma mulher típica da classe média americana em viagem ao exterior, famosa cantora que renunciou à carreira pelo casamento e tem o filho sequestrad­o durante essa viagem.

Doris não será a virgem durona, e sim a mãe que luta estoicamen­te para reencontra­r o filho sequestrad­o durante uma operação de espionagem. Ali ela cantará “Que Sera Sera” infatigave­lmente, e cada vez mais alto, na esperança de ser ouvida pelo filho, que está em algum lugar da casa.

A aristocrát­ica plateia torce o nariz, mas o embaixador parece cada vez mais encantado —afinal, tivera a vida salva por ela, ou antes, pelo grito agudo que interrompe um concerto no momento exato em que um atirador se preparava para executar o embaixador.

Hitchcock parece se divertir muito ao colocar em relevo o aspecto popular da cultura —a canção de sucesso— entre uma plateia pernóstica, ainda mais por meio da figura emblemátic­a da americana média ungida pelo sucesso.

Talvez as cenas desse filme restem no fim das contas como as mais memoráveis de Doris Day, que após deixar o cinema, em 1968, e encerrar seu “Doris Day Show” na TV, em 1973, optou por uma vida discreta, tão distante da mídia quanto da imagem que Hollywood cultivou para ela.

Após sair da frente das câmeras, dedicou-se a defender o direito dos animais. Foi Doris Day Animal Foundation, inclusive, que divulgou a morte. Ela estava em sua casa, em Carmel Valley, na Califórnia. Doris Day nasceu em Cincinnati, Ohio, em 1922, com o nome de Mary Ann von Kappelhoff.

Deixa o neto, Ryan. O filho único de Doris, Terry Melcher, morreu em 2004.

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Silver Screen Collection/Getty Images Doris Day de peignoir no fim dos anos 1940 ou começo dos 1950

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