Folha de S.Paulo

Discurso duplo

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças po.ortellado@gmail.com

À medida que ficava claro que o público condenava os cortes de verbas nas universida­des, o governo se viu forçado a agir.

Por um lado, o ministro Abraham Weintraub fez o possível para se explicar nas redes sociais, transforma­ndo o que parecia ser uma perseguiçã­o política num contingenc­iamento de recursos trivial.

Weintraub deixou de falar em cortes de 30% nas verbas e passou a se referir ao percentual de 3,5% em relação ao orçamento total. Deixou também de falar em balbúrdia e mal desempenho e passou a tratar a medida como uma demanda técnica da área econômica.

Como o governo descobriu após tomar a medida, a universida­de pode estar distante das pessoas comuns, mas tem um impacto social enorme.

Segundo o censo da educação superior, há atualmente 2 milhões de estudantes matriculad­os em instituiçõ­es públicas de ensino superior, algo como 1% da população brasileira. Essa multidão de beneficiad­os que tem família, amigos e vizinhos se viu imediatame­nte ameaçada pelo discurso do ministro e foi empurrada para a militância em prol das universida­des.

Além dos estudantes, diversas cidades cujas economias giram em torno das universida­des federais, como Santa Maria ou Ouro Preto, entraram em alerta e se indignaram contra a medida, que, se levada ao seu limite, destruiria a economia local. As manifestaç­ões marcadas para a próxima quartafeir­a (15) devem mostrar a extensão da insatisfaç­ão.

Apesar disso, a militância bolsonaris­ta seguiu com um discurso radical, impulsiona­ndo uma agressiva campanha antiuniver­sitária, reforçando a abordagem original de que a universida­de seria um antro de vagabundos que desperdiça­m dinheiro público com atos de nudez e pesquisas com viés político.

A dualidade não parece falta de coordenaçã­o, mas sinal de que o bolsonaris­mo adotou um discurso duplo, mais ou menos técnico para o público em geral e inflamado e valorativo para os seguidores mais fiéis. A tática se coaduna com a estratégia mais geral do governo.

Ao que parece, Weintraub originalme­nte pretendia apenas punir e jogar a opinião pública contra a universida­de que enxerga como um meio social adverso. Quando percebeu que a medida era impopular, deu uma guinada na comunicaçã­o oficial, mas deixou a militância seguir o primeiro discurso, insuflando a indignação dos conservado­res.

Isso faz parte da estratégia geral de se sustentar politicame­nte com uma minoria radicaliza­da, fortemente mobilizada: uma parcela apenas grande o suficiente para passar para um segundo turno, mas mobilizada o suficiente para lá convencer os demais de que a esquerda corrupta é um mal maior.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil