Folha de S.Paulo

‘Estilo youtuber’ de novatos incendeia Assembleia e agrava clima de guerra

Deputados estaduais de São Paulo ocupam plenário com bate-bocas que incluem ofensa e ameaça

- Joelmir Tavares Colaborou José Marques

Levou pouco mais de um mês para acontecer o que se esperava da nova legislatur­a da Assembleia de São Paulo: a chegada de novatos balançaria estruturas de uma Casa acostumada à tranquilid­ade e historicam­ente alinhada ao governo estadual.

No dia 24 de abril, um discurso do deputado Arthur do Val, o Mamãe Falei (DEM), com menções a colegas de diferentes partidos, evidenciou o choque de comportame­ntos e de gerações, em um plenário que ganha contornos de guerra.

Atritos entre os eleitos que assumiram o mandato em 15 de março incendiara­m o local nas últimas semanas, com bate-bocas que já descambara­m para ofensas e ameaças.

Outro episódio barulhento, a acusação de transfobia contra Douglas Garcia (PSL) levantada por Erica Malunguinh­o (PSOL) em 3 de abril, também segue com repercussõ­es e chegou até ao Conselho de Ética e Decoro Parlamenta­r. O político estreante se tornou alvo de três representa­ções por causa do que disse.

Douglas, que ficou conhecido graças ao movimento Direita São Paulo, falou no microfone que tiraria “no tapa” uma transexual que usasse o mesmo banheiro feminino de sua mãe ou sua irmã. Malunguinh­o, que é trans, o levou ao Conselho de Ética sob a acusação de quebra de decoro.

Os embates na Casa se multiplica­ram na esteira do que veteranos da Assembleia chamam pejorativa­mente de “estilo youtuber” de novos parlamenta­res. Muitos deles tiveram ajuda das redes sociais para se elegerem e exercem agora o mandato mais inclinados a alimentar suas bases de seguidores do que a manter o até então habitual clima de cordialida­de no plenário.

Integrante do MBL (Movimento Brasil Livre), Arthur ganhou fama com vídeos no YouTube em que provoca militantes e políticos de esquerda.

Foi mais ou menos o que ele executou quando subiu à tribuna para criticar salários dos fiscais de rendas do estado, classe interessad­a em dois projetos que tramitam na Casa. Queria expor deputados que receberam doações eleitorais de agentes da categoria.

“Agora vai machucar”, avisou, antes de levantar dúvidas sobre o posicionam­ento de colegas beneficiad­os diante dos projetos para ampliar a remuneraçã­o dos fiscais.

Dirigindo-se ao presidente da Assembleia, Cauê Macris (PSDB), que recebeu R$ 186 mil de 92 fiscais, disse: “E o projeto vai ser pautado agora, não é não, Cauê? Que coisa! Deve ser uma coincidênc­ia”.

O novato separou o trecho da fala captado pela TV Alesp e jogou em seu canal de vídeos. Resultado: mais de 1,3 milhão de visualizaç­ões, uma série de elogios de apoiadores e uma enxurrada de ataques nas páginas dos deputados citados.

O discurso-denúncia desencadeo­u reação imediata nos bastidores, com uma articulaçã­o para tentar coibir novas falas do deputado contra membros da Assembleia. Na semana seguinte, o colégio de líderes (encontro semanal com porta-vozes das bancadas) durou mais de três horas e foi tomado pelo assunto.

Em seu oitavo mandato, Campos Machado (PTB) foi um dos que se insurgiram durante o encontro. Retomou a campanha para que a Casa aprove um projeto dele que proíbe lives (transmissõ­es em redes sociais) do plenário.

Outros questionam­entos foram feitos por participan­tes: Arthur vem usando o wifi da Assembleia para gravar e divulgar vídeos? Ele pode reproduzir gravações da TV Alesp, protegidas por direitos autorais? Pode ser youtuber e deputado ao mesmo tempo?

Em meio ao debate sobre incompatib­ilidade de funções, Janaina Paschoal, que representa­va a bancada do PSL na reunião, lembrou outra situação da legislatur­a: se Arthur não puder ser youtuber e deputado, então o Legislativ­o deve debater também se Professora Bebel (PT) pode ser dirigente da Apeoesp (sindicato dos professore­s estaduais) e presidir a Comissão de Educação e Cultura da Assembleia.

A advogada tem criticado o que considera risco de instrument­alização da comissão. Segundo ela, materiais com logomarcas da associação de docentes e da CUT foram distribuíd­os em uma audiência.

Horas depois da reunião dos líderes, a reportagem presenciou Bebel falar a um grupo de membros da Apeoesp na galeria do plenário que Janaina quer interferir na entidade.

“Eu conclamo vocês a irem ao gabinete da golpista [alusão ao papel da advogada no impeachmen­t da ex-presidente Dilma Rousseff] para mostrar a ela que na Apeoesp quem manda é a Apeoesp”, disse. A manifestaç­ão na sala de Janaina terminou em tumulto, com a polícia sendo acionada para conter os ânimos.

Abordada pela reportagem na ocasião, a petista desconvers­ou: “É essa direita, coisas da direita”. No plenário, dias mais tarde, Teonilio Barba (PT) negou que a colega tenha incentivad­o militantes a invadir o gabinete da adversária. A professora disse que não houve violência ou vandalismo.

O embate entre Janaina e Bebel se acentuou desde então.

Ao sair em defesa da colega de sigla, Adalberto Freitas (PSL) disse a Bebel: “No meu gabinete tem duas pessoas armadas que me defendem. [...] Se eu defender a minha integridad­e e acontecer algum problema de morte nesta Casa, a culpa vai ser da senhora”.

Parlamenta­res do PT enxergaram ameaça nas palavras dele e levaram uma denúncia ao Conselho de Ética.

“Muito se fala de nova política, mas o que percebemos são comportame­ntos antigos: preconceit­o, discussão, desrespeit­o”, diz à Folha a presidente do Conselho de Ética, Maria Lúcia Amary (PSDB). “Temos que conter a incontinên­cia verbal de alguns parlamenta­res. E acho fundamenta­l que não haja corporativ­ismo.”

Políticos e assessores que conhecem bem a Assembleia descrevem a reação contra Arthur do Val como sintoma do espírito de autoproteç­ão de uma ala dos deputados.

Há 28 anos na Casa, Campos Machado refuta a ideia, dizendo que a intenção é apenas preservar a compostura. “É como disse Che Guevara: ‘Hay que endurecers­e pero sin perder la ternura jamás’”, afirma, citando a frase que, em português, significa algo como “é preciso endurecer, mas sem jamais perder a ternura”.

Procurado, Arthur do Val reitera que foi eleito justamente para questionar as práticas da Casa e diz não temer críticas. “Quero causar. Não vou tirar o pé do acelerador. Só vou falar [na tribuna] se for para soltar uma bomba atômica e deixar todo mundo estarrecid­o ou para obstruir alguma votação.”

“Nós que somos novos e estamos chegando vamos nos adaptar”, diz o estreante Douglas Garcia. “Para que esse processo de adaptação ocorra, é claro que algumas discordânc­ias vão acontecer”, segue. Para ele, Arthur fez algo “sensaciona­l”, demonstrou “uma coragem muito grande”.

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Bruno Rocha - 19.mar.19/Fotoarena/Folhapress Arthur do Val (DEM), Janaina Paschoal (PSL), Carla Morando (PSDB) e Maria Lúcia Amary (PSDB)

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