‘Estilo youtuber’ de novatos incendeia Assembleia e agrava clima de guerra
Deputados estaduais de São Paulo ocupam plenário com bate-bocas que incluem ofensa e ameaça
Levou pouco mais de um mês para acontecer o que se esperava da nova legislatura da Assembleia de São Paulo: a chegada de novatos balançaria estruturas de uma Casa acostumada à tranquilidade e historicamente alinhada ao governo estadual.
No dia 24 de abril, um discurso do deputado Arthur do Val, o Mamãe Falei (DEM), com menções a colegas de diferentes partidos, evidenciou o choque de comportamentos e de gerações, em um plenário que ganha contornos de guerra.
Atritos entre os eleitos que assumiram o mandato em 15 de março incendiaram o local nas últimas semanas, com bate-bocas que já descambaram para ofensas e ameaças.
Outro episódio barulhento, a acusação de transfobia contra Douglas Garcia (PSL) levantada por Erica Malunguinho (PSOL) em 3 de abril, também segue com repercussões e chegou até ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. O político estreante se tornou alvo de três representações por causa do que disse.
Douglas, que ficou conhecido graças ao movimento Direita São Paulo, falou no microfone que tiraria “no tapa” uma transexual que usasse o mesmo banheiro feminino de sua mãe ou sua irmã. Malunguinho, que é trans, o levou ao Conselho de Ética sob a acusação de quebra de decoro.
Os embates na Casa se multiplicaram na esteira do que veteranos da Assembleia chamam pejorativamente de “estilo youtuber” de novos parlamentares. Muitos deles tiveram ajuda das redes sociais para se elegerem e exercem agora o mandato mais inclinados a alimentar suas bases de seguidores do que a manter o até então habitual clima de cordialidade no plenário.
Integrante do MBL (Movimento Brasil Livre), Arthur ganhou fama com vídeos no YouTube em que provoca militantes e políticos de esquerda.
Foi mais ou menos o que ele executou quando subiu à tribuna para criticar salários dos fiscais de rendas do estado, classe interessada em dois projetos que tramitam na Casa. Queria expor deputados que receberam doações eleitorais de agentes da categoria.
“Agora vai machucar”, avisou, antes de levantar dúvidas sobre o posicionamento de colegas beneficiados diante dos projetos para ampliar a remuneração dos fiscais.
Dirigindo-se ao presidente da Assembleia, Cauê Macris (PSDB), que recebeu R$ 186 mil de 92 fiscais, disse: “E o projeto vai ser pautado agora, não é não, Cauê? Que coisa! Deve ser uma coincidência”.
O novato separou o trecho da fala captado pela TV Alesp e jogou em seu canal de vídeos. Resultado: mais de 1,3 milhão de visualizações, uma série de elogios de apoiadores e uma enxurrada de ataques nas páginas dos deputados citados.
O discurso-denúncia desencadeou reação imediata nos bastidores, com uma articulação para tentar coibir novas falas do deputado contra membros da Assembleia. Na semana seguinte, o colégio de líderes (encontro semanal com porta-vozes das bancadas) durou mais de três horas e foi tomado pelo assunto.
Em seu oitavo mandato, Campos Machado (PTB) foi um dos que se insurgiram durante o encontro. Retomou a campanha para que a Casa aprove um projeto dele que proíbe lives (transmissões em redes sociais) do plenário.
Outros questionamentos foram feitos por participantes: Arthur vem usando o wifi da Assembleia para gravar e divulgar vídeos? Ele pode reproduzir gravações da TV Alesp, protegidas por direitos autorais? Pode ser youtuber e deputado ao mesmo tempo?
Em meio ao debate sobre incompatibilidade de funções, Janaina Paschoal, que representava a bancada do PSL na reunião, lembrou outra situação da legislatura: se Arthur não puder ser youtuber e deputado, então o Legislativo deve debater também se Professora Bebel (PT) pode ser dirigente da Apeoesp (sindicato dos professores estaduais) e presidir a Comissão de Educação e Cultura da Assembleia.
A advogada tem criticado o que considera risco de instrumentalização da comissão. Segundo ela, materiais com logomarcas da associação de docentes e da CUT foram distribuídos em uma audiência.
Horas depois da reunião dos líderes, a reportagem presenciou Bebel falar a um grupo de membros da Apeoesp na galeria do plenário que Janaina quer interferir na entidade.
“Eu conclamo vocês a irem ao gabinete da golpista [alusão ao papel da advogada no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff] para mostrar a ela que na Apeoesp quem manda é a Apeoesp”, disse. A manifestação na sala de Janaina terminou em tumulto, com a polícia sendo acionada para conter os ânimos.
Abordada pela reportagem na ocasião, a petista desconversou: “É essa direita, coisas da direita”. No plenário, dias mais tarde, Teonilio Barba (PT) negou que a colega tenha incentivado militantes a invadir o gabinete da adversária. A professora disse que não houve violência ou vandalismo.
O embate entre Janaina e Bebel se acentuou desde então.
Ao sair em defesa da colega de sigla, Adalberto Freitas (PSL) disse a Bebel: “No meu gabinete tem duas pessoas armadas que me defendem. [...] Se eu defender a minha integridade e acontecer algum problema de morte nesta Casa, a culpa vai ser da senhora”.
Parlamentares do PT enxergaram ameaça nas palavras dele e levaram uma denúncia ao Conselho de Ética.
“Muito se fala de nova política, mas o que percebemos são comportamentos antigos: preconceito, discussão, desrespeito”, diz à Folha a presidente do Conselho de Ética, Maria Lúcia Amary (PSDB). “Temos que conter a incontinência verbal de alguns parlamentares. E acho fundamental que não haja corporativismo.”
Políticos e assessores que conhecem bem a Assembleia descrevem a reação contra Arthur do Val como sintoma do espírito de autoproteção de uma ala dos deputados.
Há 28 anos na Casa, Campos Machado refuta a ideia, dizendo que a intenção é apenas preservar a compostura. “É como disse Che Guevara: ‘Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás’”, afirma, citando a frase que, em português, significa algo como “é preciso endurecer, mas sem jamais perder a ternura”.
Procurado, Arthur do Val reitera que foi eleito justamente para questionar as práticas da Casa e diz não temer críticas. “Quero causar. Não vou tirar o pé do acelerador. Só vou falar [na tribuna] se for para soltar uma bomba atômica e deixar todo mundo estarrecido ou para obstruir alguma votação.”
“Nós que somos novos e estamos chegando vamos nos adaptar”, diz o estreante Douglas Garcia. “Para que esse processo de adaptação ocorra, é claro que algumas discordâncias vão acontecer”, segue. Para ele, Arthur fez algo “sensacional”, demonstrou “uma coragem muito grande”.