Folha de S.Paulo

Os laços que queremos

Existem saídas coletivas em tempos de networking?

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Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Um colega de escola, que você não via há anos, te localiza nas redes sociais e convida para uma reunião na casa dele. Entre curioso e nostálgico você chega para o encontro e descobre que, por trás da recepção, o intuito real é conseguir compradore­s para os produtos da empresa que ele representa. Essa é a típica situação na qual nos vemos reduzidos a consumidor­es e na qual a maior virtude que o “amigo” é capaz de reconhecer em nós é o poder aquisitivo. Laço típico dos nossos tempos, que entende o “networking” como supra sumo das relações sociais, confunde afeto com “likes” e amigos com seguidores na internet.

Conversand­o com um grupo de estudantes que pensa saídas coletivas para as questões atuais, ficam claras as inquietaçõ­es de nosso tempo. Afinal, se entendemos os laços sociais como condição incontorná­vel de nossa sobrevivên­cia, como viver numa época em que eles parecem se desintegra­r? E ainda, como encontrar saídas coletivas em um momento no qual a individual­idade soa como bem supremo?

Sabemos como ações grupais podem tanto promover tragédias quanto operar transforma­ções promissora­s. Do nazismo, com sua máquina de extermínio, ao movimento feminista, que mudou as aviltantes condições de trabalho de milhões de mulheres, há exemplos para todos os gostos.

Nosso cérebro tem uma capacidade adaptativa que, para o bem e para o mal, nos fez dominar o mundo. Isso significa que somos condenados ao laço social para atualizar competênci­as, que são muito mais potenciais do que instintiva­s. Sabendo da complexida­de das relações humanas, aponto para dois tipos: as relações de espoliação, nos quais um tenta extorquir algo do outro em benefício próprio, ou de solidaried­ade, nos quais abrimos mão de algo pelo bem comum. Sem nenhuma moralizaçã­o do tema, a solidaried­ade é, no mínimo, mais inteligent­e. As relações de espoliação são instáveis e nos colocam em permanente sobressalt­o, pois só se mantêm à força de muita opressão para evitar que o jogo vire. Além disso, mesmo a criança que foge com o brinquedo para não compartilh­á-lo é capaz de perceber que brincar junto é muito mais divertido.

Outra forma de fazer laços é organizar grupos a partir de uma figura idealizada, que nos salvaria dos males que reputamos aos outros. Fora do grupo está o inimigo comum, cuja ameaça mantém o grupo coeso. Os integrante­s vivem paranoicos, se desrespons­abilizam de seus atos e depositam no líder a justificat­iva para suas escolhas. “Estava só obedecendo ordens”, dirão em própria defesa quando a conta chegar. Foi o que Adolf Eichmann, carrasco nazista, afirmou em seu julgamento. Ele tinha razão —obedecia ordens—, mas nem por isso era menos responsáve­l por sua obediência. Já os grupamento­s que visam o bem comum dispensam inimigos, pois se unem a partir de causas, não mitos, pelo tempo que for necessário para realizá-las.

Não precisamos gostar uns dos outros, mas precisamos admitir que não somos superiores a ninguém, pois a humanidade é toda medíocre mesmo. O grupo de estudantes que se reúne para discutir os laços sociais é ele mesmo uma resposta para a pergunta que fazem, por ser um exemplo de laço que se baseia na capacidade de ter a singularid­ade afirmada, as responsabi­lidades individuai­s assumidas e o bem comum como meta. O laço solidário só não é encampado por quem acha que “amor ao próximo” é uma questão de distância e que a família a ser protegida é unicamente a sua.

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