Folha de S.Paulo

Montagem brasileira de ‘Angels in America’ ressalta qualidade do texto original

- Paulo Bio Toledo

A premiada peça de Tony Kushner “Angels in America” logo chamou a atenção, no início da década de 1990, pela força com que consegue articular política, história e sociedade ao lidar com o tema da Aids.

Junto ao drama particular de homossexua­is vivendo a rápida disseminaç­ão da doença, a obra mostra a atmosfera moralista e conservado­ra na política dos Estados Unidos em meados dos anos 1980 moldando a sociabilid­ade do país. É um ambiente no qual o vírus, visto inicialmen­te como castigo divino à sodomia praticada pelos gays, encontrou condições não apenas biológicas mas também sociais para se proliferar.

Para dar conta desta mirada complexa, a montagem da Armazém Companhia de Teatro, dirigida por Paulo de Moraes, cria um mecanismo próprio de encenação. De modo mais ou menos constante, após o fim de cada cena, alguns dos personagen­s continuam no palco; ficam ali demarcando a permanênci­a do acontecime­nto anterior e, assim, sugerindo conexões entre as histórias distintas contadas na peça.

É uma estética de justaposiç­ão que faz com que nenhuma cena seja somente ela. Em outras palavras, os indivíduos solitários, fraturados e delirantes que povoam o texto ficam sendo partes de um todo social, estão conectados nessa grande máquina do mundo, conservado­ra e opressiva.

A cenografia sintética contribui para isso. Elementos simples ganham múltiplos significad­os e os espaços são sugeridos mais pela imaginação do que pela concretiza­ção realista dos locais onde as cenas se desenvolve­m.

Toda essa mise-en-scène cria uma marcante sintaxe teatral para a dramaturgi­a de Tony Kushner. Coisa que não só preserva como ressalta a força reflexiva da palavra e a qualidade literária da dramaturgi­a.

Mérito também de um excelente elenco que se aproxima com atenção e sensibilid­ade das fascinante­s personagen­s de “Angels in America” e não deixa que as incursões metafísica­s da peça (seus anjos, sonhos e visões) se descolem da vida concreta que envolve toda a trama.

Contudo, o espetáculo não resolve a desarmonia entre as primeira e a segunda peça que formam, em conjunto, “Angels in America” e contam com mais de seis horas de duração —cerca de uma hora a menos do que a montagem da Broadway de 2017.

A primeira parte recebe o título de “O Milênio se Aproxima”. Na segunda, chamada “Perestroik­a”, a viva dinâmica da fração inicial perde muito de sua força —tanto na dramaturgi­a como também na montagem.

Ali a trama é retomada, mas num momento em que tudo parece já ter sido consumado. As cenas tornam-se arrastadas, mais prolixas e envoltas em longas reflexões desconecta­das da ação.

Tudo culmina em um estranho discurso otimista de resistênci­a pela vida. Algo que soa como um final feliz “ex machina” para o quadro desolador apresentad­o até então pela companhia no palco.

Há de se buscar otimismo, é verdade, mas esse que nasce da peça soa tão postiço e estranho ao desenvolvi­mento da trama quanto frágil no tempo em que vivemos, tenebrosam­ente semelhante ao tempo de “Angels in America”.

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Mauro Kury/Divulgação Cena da versão brasileira do espetáculo

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