Folha de S.Paulo

A vida sexual das minhocas

A composteir­a está deixando o surubão de Noronha no chinelo

- Manuela Cantuaria Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

Passei a festa inteira sem saber o que fazer com meus braços. É o que sempre acontece quando tento flertar. Meu alvo tem um quê de Heath Ledger —que Deus o tenha— com Jon Snow —que Deus o proteja. Mas nossos olhares nunca se encontram, como em uma partida frustrada de frescobol.

Penso em meus animais de estimação, que nessa hora estão sozinhos, aproveitan­do o sábado à noite muito mais do que eu. Meus pets, no caso, são as minhocas da composteir­a que fica na cozinha. Quanto mais as conheço, mais invejo aquela rotina que vai muito além de comer restos e cagar adubo.

A vida sexual das minhocas é bem mais animada do que a nossa. Para início de conversa, elas não têm braços, o que deve facilitar muito a coisa do flerte. Além disso, são hermafrodi­tas, fecundam e são fecundadas ao mesmo tempo, numa espécie de 69 que deu certo. Perdi a conta de quantas vezes peguei essas minhocas no ato e fechei a composteir­a às pressas, como quem pede desculpa por ter entrado sem bater.

Meus pensamento­s ainda chafurdam no lixo orgânico quando o Jon Snow de padaria vem puxar assunto. Spoiler: ele não assiste “Game of Thrones”, mas é um guerreiro disposto a me ouvir falar sobre dragões e minhocas por horas a fio. Sigo o exemplo de minhas amiguinhas anelídeas e o convido para minha casa.

Entramos pela cozinha e me parece uma boa ideia apresentá-lo às minhocas. Ele finge interesse para pular logo para a próxima fase. Abro a composteir­a e me deparo com uma cena estarreced­ora: minhas amadas minhocas, boiando, sem vida, no chorume. Só me resta espernear no chão de azulejo. O Jon Snow de camelô desconfia que não vai ter o season finale que esperava.

Custo a acreditar naquilo, hoje mais cedo essa composteir­a estava deixando o surubão de Noronha no chinelo. Reviro o lixo em busca de respostas e encontro o limão da gim tônica que preparei antes de sair. O ambiente deve ter ficado ácido demais para as minhocas, que mergulhara­m no chorume em um suicídio coletivo. Foi uma noite de péssimas escolhas para todas nós.

Eu só não chamo ele de verme porque seria um elogio. Com uma expressão de asco, o Juan de las Nieves paraguaio pede um Uber que chegará em três minutos. Três longos minutos de silêncio, pela morte das minhocas e da minha vida sexual.

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Silvis

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