Folha de S.Paulo

As estrelas e a sarjeta

Se cortamos no financiame­nto das artes, então estamos lutando para quê?

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Um dia disseram a Winston Churchill que era preciso cortar os custos do financiame­nto das artes. A Inglaterra estava em guerra. A guerra é um negócio caro.

Churchill recusou. E terá respondido: se cortamos no financiame­nto das artes, então estamos lutando para quê?

O filósofo Peter Singer discorda do velho Winston. A propósito da reconstruç­ão de Notre-Dame, Peter Singer e um seu discípulo, Michael Plant, vieram argumentar que o dinheiro doado pelos ricos para a reconstruç­ão da catedral deveria ser usado para combater a pobreza. (“How Many Lives Is Notre-Dame Worth”, Project Syndicate).

Nas 24 horas seguintes ao fogo, foi possível juntar € 1 bilhão em donativos. As estimativa­s dos especialis­tas apontam para uma reconstruç­ão que custa € 300 milhões a € 600 milhões. Donde, quantas vidas de pobreza não poderiam ser salvas pela totalidade desse bilhão?

Curioso. Para uma alma não utilitaris­ta (como a minha), esses valores seriam um bom pretexto para um compromiss­o: pagava-se a catedral e depois, com o dinheiro remanescen­te e com a concórdia de todos, era possível passar às questões humanitári­as.

Pelos vistos, Singer e Plant não gostam de compromiss­os. É tudo ou nada. E a catedral? A catedral deveria ficar em ruínas para sinalizar a virtude dos contemporâ­neos.

Li o texto com interesse. Se o problema pudesse ser resumido a uma simples questão matemática —tiramos daqui, entregamos mais além— nada haveria a objetar. Infelizmen­te, o mundo é mais complexo do que Singer imagina.

Deixemos de lado algumas objeções básicas, como a ideia de que o dinheiro pertence sempre a alguém; e que esse “alguém” tem toda a legitimida­de para o usar como entende.

Deixemos também de lado a evidência dolorosa de que, se o pensamento utilitaris­ta de Singer pudesse ser aplicado retroativa­mente, as nossas cidades, as nossas biblioteca­s, as nossas salas de concertos ficariam vazias como desertos.

O que me impression­ou no texto foi a redução da nossa humanidade à sua dimensão mais básica. Ou, inversamen­te, a ideia de que a arte e a beleza ocupam sempre um lugar secundário em qualquer existência.

Fato: quando temos fome, os anseios da alma podem esperar. Mas, quando olhamos para a história da nossa civilizaçã­o, as necessidad­es do corpo e da alma nunca foram entendidas como mutuamente excludente­s.

O filósofo Roger Scruton, que vale sobretudo pelos seus textos sobre estética (opinião pessoal), explica isso em documentár­io que aconselho. O título é revelador: “Why Beauty Matters”.

Durante 2.500 anos, a necessidad­e de beleza nunca esteve em causa: a beleza era o sinal de um mundo superior que se revelava na temporalid­ade dos homens; e, a partir do iluminismo, uma fonte de conhecimen­to que permitia aos homens serem melhores do que meras bestas.

Essa visão redentora do belo acabou por perder-se com o “desencanta­mento do mundo” moderno. Como explica Scruton, os valores passaram a ser justificad­os pela sua utilidade mais contábil. O que não é útil não vale nada. Consequênc­ias?

Sim, a escassez de beleza retira aos seres humanos uma das fontes mais importante­s de consolação moral e espiritual. “Todos estamos na sarjeta”, escrevia Oscar Wilde, “mas alguns de nós estão olhando para as estrelas.” De que vale viver na sarjeta quando se apaga essa luz no céu?

Mas existe uma segunda privação: uma privação intelectua­l e até política. Quando tudo se reduz a mera contabilid­ade de secos e molhados, como suster conceitos intangívei­s como “liberdade” ou “democracia”? Como alimentar qualquer ideal superior que precisa sempre da cultura e da arte para ganhar forma e voz?

Ironicamen­te, o utilitaris­mo progressis­ta de Peter Singer é bastante semelhante ao filistinis­mo reacionári­o de quem defende menos verbas para cursos de humanidade­s e mais foco em áreas que geram “retorno imediato ao contribuin­te”.

Em ambos os casos, presenciam­os o triunfo do utilitaris­mo raso, a defesa do rebaixamen­to do horizonte humano, a transforma­ção do pensamento em adereço menor e até dispensáve­l.

Usar 1 bilhão de euros para combater a pobreza teria efeitos imediatos mas circunstan­ciais, que se esgotariam rapidament­e no tempo. Usar metade dessa verba para reerguer Notre-Dame é dar resposta à pergunta de Churchill. Se não defendemos o que de melhor os homens fizeram ou pensaram, estamos a lutar para quê?

A essa eu respondo: para nada.

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