Folha de S.Paulo

Mais Direito, menos rajadas

Ação policial de helicópter­o com o governador do Rio foi ilegítima

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É legítima a ação policial que dá rajadas de tiros a partir de um helicópter­o em lona não identifica­da, como no caso do sobrevoo do governador do Rio em Angra dos Reis? As bases filosófica­s do Direito mostram que não.

Helio Beltrão Engenheiro com especializ­ação em finanças e MBA na Universida­de Columbia, é presidente do Instituto Mises Brasil

É legítima a ação policial que dá rajadas de tiros a partir de um helicópter­o em uma lona não identifica­da, como no caso do sobrevoo do governador do Rio em Angra dos Reis na semana passada? Para responder, devemos revisitar as bases filosófica­s do Direito.

O maior legado das civilizaçõ­es que nos precederam é o Direito, o ordenament­o jurídico que busca promover um ambiente de cooperação, equidade e justiça. Afinal, toda sociedade civilizada conhecida prosperou a partir de uma ordem jurídica que tenha assegurado a cooperação e desencoraj­ado os conflitos.

A partir do século 18, a vontade do mais forte, legitimada pelos donos do poder, passou a ser substituíd­a por uma melhor proteção de direitos individuai­s, tais como a inviolabil­idade de pessoa e propriedad­e. As consequênc­ias práticas foram espantosas. Desde 1800, a renda média multiplico­u-se por mais de 20 vezes, e a expectativ­a de vida dobrou nos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. No mundo, a pobreza extrema caiu de 85% para menos de 10% da população total.

Virtualmen­te todos os ordenament­os jurídicos refletem em maior ou menor grau a doutrina do liberalism­o; resguardam vida, liberdade e propriedad­e. Consequent­emente, o Direito ocupa-se sobre violações desses direitos: o fenômeno da agressão, ou “crime”. A liberdade legítima, dizia Thomas Jefferson, é “a ação desobstruí­da, de acordo com a nossa vontade, limitada por igual direito de terceiros”. Na concepção do mundo moderno, é ilegítimo lançar uma agressão ou ameaça de agressão física contra terceiros.

Em linha com tal concepção, consagrou-se no Direito a doutrina da legítima defesa: é lícito repelir a força com a força. O princípio abarca também a ameaça de agressão: é lícito usar força caso a ameaça seja clara e iminente. É inclusive permitida força letal para afastar ameaça clara e iminente, caso o indivíduo ameaçado razoavelme­nte julgue que a força letal seja necessária para neutraliza­r a ameaça.

A proporcion­alidade deve ser observada, ou seja, se uma força não letal for factível e suficiente para neutraliza­r a ameaça, então esta deve ser utilizada.

Agora passo a exemplos baseados na doutrina acima, nos quais em prol da inteligibi­lidade desconside­rarei o que determina o ordenament­o jurídico brasileiro. Um cidadão, no curso de um assalto por bandido que empunha uma arma, consegue matar o bandido. É crime? Não; é legítima defesa, pois a ameaça era clara e iminente.

Um sujeito recebe uma ligação de um rival, que promete matá-lo. O sujeito vai até a casa do rival e o executa. É crime? Sim, pois a ameaça não era iminente.

E quando é que ameaças são criminosas? Justamente quando são claras e iminentes. Vamos a um exemplo.

Um sujeito dirige negligente­mente um carro em zigue-zague em uma avenida movimentad­a, passando por um triz ao lado pedestres nas calçadas. É crime? Sim, a ameaça a inocentes é iminente. O sujeito deve ser prontament­e impedido de continuar circulando, sem prejuízo de uma ação penal.

Volto à pergunta inicial. A ação policial não foi legítima, pois inexistiu ameaça identificá­vel contra o helicópter­o, hipótese confirmada pela constataçã­o posterior de que se tratava de uma lona de oração de religiosos, naquele momento vazia. A ação represento­u risco de vida potencial a inocentes.

O Direito foi depurado e aprimorado ao longo de séculos. Não convém torcer e manipular seus princípios gerais em prol de um expediente conjuntura­l, mesmo que se apresente como possível solução para um problema urgente, popular, imperioso.

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