Folha de S.Paulo

ANA CLAUDIA MICHELS, AGORA, NO SUS

Ana Claudia Michels persegue desejo de infância como interna em Carapicuíb­a, na Grande São Paulo

- Eliane Trindade

De ‘angel’ da Victoria’s Secret a interna do 6º ano de medicina em hospital de Carapicuíb­a. O primeiro dia de aula, quase aos 30 anos, foi ‘uma das coisas mais incríveis da vida’

Uma mulher loira e alta, de olhos verdes, caminha pelos corredores do pronto socorro de cirurgia clínica do Hospital Geral de Carapicuíb­a, na Grande São Paulo. Ela entra no consultóri­o número 2 e examina, sob supervisão de um residente e de uma médica, uma paciente com suspeita de trombose.

“Foi um ótimo atendiment­o. Ela me tocou, examinou direito. Muitos médicos têm medo de tocar na gente”, avaliou a cozinheira Caroline Sena, 36, ao ser encaminhad­a para um exame de imagem.

Como os demais pacientes que aguardavam naquela tarde de sexta na unidade do SUS que é referência na região, Caroline não fazia ideia de que a interna do 6º ano de medicina da faculdade São Camilo é uma das representa­ntes mais famosas da geração de top models que tem em Gisele Bündchen a número um.

Informada pela reportagem, ela elogia. “A doutora tem mesmo cara de modelo!”

Ana Claudia Michels foi uma das “angels” da marca de lingerie Victoria’s Secret em um time de brasileira­s de sucesso no circuito internacio­nal.

“Gisele começou um pouco antes, eu e as outras, no mesmo ano”, recorda-se a catarinens­e de Joinville, que estreou nas passarelas em 1995, aos 14.

“Eu era esquisita, muito magra e alta. Não era o tipo gata”, diz ela, que, ao contrário de tantas adolescent­es de sua geração, não sonhava em ser modelo. De um curso de manequim para aprender a andar de salto foi convidada para um desfile, e, lá, descoberta por um olheiro. Em uma semana estava em São Paulo com a mãe, a convite da agência.

Hoje, com 37 anos e dois filhos, se aproxima de realizar o desejo acalentado na infância. “Meu olho brilhava quando via qualquer coisa ligada a saúde. Se tinha alguém com curativo, eu queria ver os pontos.”

Depois de viver o auge nas passarelas no início dos anos 2000, Ana Cláudia voltou ao Brasil. Em 2008, começava a pensar em um plano B, quando teve um empurrão no divã do analista. “Um dia meu terapeuta me questionou: ‘E o seu sonho de fazer medicina?’”

Ela argumentou que tinha quase 30 anos, mas seguiu o conselho. “Fiz matrícula [no cursinho] morrendo de vergo

Eu morri? Paciente de Ana Claudia ao voltar do coma e se deparar com a médica

nha. Tinha ficado 17 anos sem estudar.” Por causa da carreira de modelo, o ensino médio fora concluído em supletivo.

Ao prestar o primeiro vestibular, ficou acima da 500ª colocação. Passou a ficar o dia todo no cursinho: após as aulas, tirava dúvidas com colegas. “Eu só estudava, mas foi uma delícia. Até hoje não acredito que passei.” Ficou em 37º.

Ela descreve o primeiro dia de aula como “uma das coisas mais incríveis da vida”. Emoção maior do que desfilar para Valentino ou estampar capas de revistas internacio­nais, coisas que lhe garantiram caixa para custear hoje as mensalidad­es de R$ 8.000.

Ana Claudia continua trabalhand­o como modelo esporadica­mente. Subiu na passarela há um mês em um desfile da grife Morena Rosa.

A top diz que fez amigos para a vida e rejuvenesc­eu na faculdade. Decana da turma, perdeu o bonde da formatura de 2018 após trancar dois semestres por causa de Iolanda, 2, e Santiago, nove meses. “Voltar para a faculdade e deixar as crianças em casa é a coisa mais difícil que fiz na vida.”

Quando achou que não ia dar conta, o marido, o criminalis­ta Augusto de Arruda Botelho, a incentivou. “Ele me dá muita força e umas broncas.”

Ana Cláudia diz que era uma aluna nota 9 antes de ter filhos, hoje é nota 7. “Não sobra tempo para estudar, mas estou curtindo a maternidad­e.”

Para concluir o curso no final do ano, escolheu se dedicar ao estágio, pois não consegue se preparar como deveria para as provas da residência, sempre concorridí­ssimas.

Ao ver os colegas se matando de estudar, acha pouco provável passar na residência de cara. “Se não passar, pretendo ficar um ano trabalhand­o como médica de família no SUS e vou ser muito feliz.”

Os postos de saúde contratam médicos generalist­as, algo que ela será logo após a faculdade. Quando entrar na residência, Ana Claudia terá outros três anos de clínica-geral. Os dois últimos anos são dedicados à especializ­ação —no seu caso, em endocrinol­ogia.

No estágio, a futura médica começa a pôr a mão na massa, sob supervisão. Neste mês, pela manhã, seu turno é na UTI. Entra às 7h e se divide com seis internos nos primeiros cuidados com os pacientes graves espalhados pelos 20 leitos.

Cabe a eles checar exames laboratori­ais, fazer a análise clínica de cada um e apresentar a evolução dos casos à equipe na visita das 9h, quando se reúnem o chefe da UTI, médicos, residentes, fisioterap­eutas e enfermagem.

São os internos também que falam com os familiares. “Gosto desse contato. É quando consigo saber mais da vida de cada paciente e tento traduzir quadros complexos de modo simples”, diz ela.

O estágio vem após quatro anos de estudos teóricos.

“Avaliamos quesitos como capacidade de raciocínio clínico e de tirar história detalhada do paciente”, diz Volnei Castanho, 63, chefe da UTI no hospital de média complexida­de, com 241 leitos e 6.599 atendiment­os diários em todas as especialid­ades.

Ana Claudia usa sempre o mesmo figurino: camisa, jeans e tênis. Passou a usar também óculos. Nunca foi reconhecid­a por um paciente, mas já ouviu de alguns: “Doutora, a senhora devia ser modelo”.

No primeiro semestre de estágio, foi confundida com um anjo por um jovem que levou cinco tiros em confronto com a polícia. “Eu morri?”, perguntou ele ao retornar do coma. A interna explicou que ele não estava no céu, mas algemado ao leito do hospital.

A troca do glamour das passarelas pelos desafios de saúde pública a deixa realizada.

“Temos a sorte de estar dentro de hospital com estrutura, onde o SUS funciona como deveria. Mas ainda assim é angustiant­e saber que muitos dos pacientes não têm condições de se cuidar fora daqui.”

[Quando criança] Meu olho brilhava quando via qualquer coisa ligada a saúde. Se tinha alguém com curativo, eu queria ver os pontos

Um dia meu terapeuta me questionou: ‘E o seu sonho de fazer medicina?’ Ana Claudia Michels modelo

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Eduardo Anizelli/Folhapress
 ?? Eduardo Anizelli/Folhapress ?? A modelo Ana Claudia Michels durante atendiment­o no hospital em Carapicuíb­a (SP)
Eduardo Anizelli/Folhapress A modelo Ana Claudia Michels durante atendiment­o no hospital em Carapicuíb­a (SP)
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Marcelo Pereira - 16.out.14/UOL Ana Claudia em desfile em SP em 2014

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