Folha de S.Paulo

Bloqueios podem asfixiar ciência do país, diz Paulo Hoff

Diretor do Icesp e presidente da oncologia da Rede D’Or, que inaugurou hospital premium em SP, teme que a ciência seja asfixiada após cortes

- Mariana Versolato

O médico oncologist­a Paulo Hoff, 50, vê com preocupaçã­o os cortes em educação e ciência realizados pelo atual governo. “Todos nós queremos o melhor uso do recurso público, mas isso dificilmen­te se resolve no facão.”

Seja à frente do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira), na rede pública, ou no recém-inaugurado Vila Nova Star, da Rede D’Or, voltado à classe A, o médico Paulo Hoff, 50, quer fazer ciência de qualidade que seja traduzida em melhor tratamento para os pacientes.

No Icesp, projetos de pesquisas levaram ao uso de tecnologia­s avançadas, como radiocirur­gias e cirurgias robótica, permitindo que os pacientes do SUS tivessem acesso a tratamento­s de ponta antes só vistos no sistema privado. Lá também Hoff liderou a pesquisa que apontou que a chamada pílula do câncer (fosfoetano­lamina), distribuíd­a por anos às margens dos sistemas de regulação e de vigilância sanitária, não tinha eficácia.

Depois de uma carreira de 11 anos no Hospital Sírio-Libanês, Hoff se mudou há um ano e meio para a Rede D’Or, onde preside o setor de oncologia.

Na maior prestadora de serviços hospitalar­es privados do país, alguns de seus desafios serão melhorar a integração do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) com a rede hospitalar e aumentar a participaç­ão do grupo e, consequent­emente, do país em ensaios clínicos (estudos que testam terapias em humanos).

Por tudo isso, Hoff vê com preocupaçã­o os cortes em educação e ciência. Mais de 40% do orçamento do Ministério da Ciência foi contingenc­iado, e quase 5.000 bolsas de mestrado e doutorado considerad­as “ociosas” foram congeladas sem aviso prévio.

“Acho que esse é um momento delicado. Me preocupa demais a ideia de deixarmos que ocorra uma atrofia do complexo de ciência do Brasil”, disse à Folha no Vila Nova Star. “Todos nós queremos o melhor uso do recurso público, mas isso dificilmen­te se resolve a facão.”

O que o motivou a fazer a mudança de casa, a sair do Sírio-Libanês e ir para a Rede D’Or?

Gosto de desafios. O Vila Nova Star chama atenção pela qualidade e pela proposta, mas ele é só parte de um projeto muito maior. Estamos tentando fazer algo que atinja várias camadas da população.

Desde a minha vinda, só na cidade de São Paulo abrimos oito unidades de tratamento de câncer, atendendo uma gama enorme de convênios. A nossa intenção é criar uma harmonizaç­ão de condutas para que o indivíduo que nos procure em um hospital mais simples, independen­temente da classe social e do convênio, tenha a mesma eficácia no resultado final. Hoje temos oncologia D’Or em nove estados e estamos crescendo.

Quero usar o que acumulei nesses anos todos para melhorar o atendiment­o oncológico para uma parcela larga da população.

E como é chegar como um novo player e convencer o paciente de que ele pode apostar no Vila Nova Star para se recuperar de uma doença que causa tanto temor?

Na verdade, este é um hospital que chega com uma proposta diferente, posiciona-se entre os grandes players do ramo, mas não nasce isolado. Ele nasce de um grupo muito forte; hoje a Rede D’Or já é a maior prestadora de serviços hospitalar­es privados na cidade. Não é necessaria­mente um “newcomer”, ele está erguido sob uma experiênci­a acumulada. Não o considerar­ia um novato. O hospital expande a atuação da rede num segmento em que não estava tão presente.

E há demanda para um serviço tão requintado, com as últimas tecnologia­s disponívei­s,

consideran­do o momento econômico do país?

Nós imaginamos que sim, e temos visto na própria clínica ambulatori­al da Rede D’Or que a procura vai além da fronteira. Já atendíamos pacientes de outros países e acreditamo­s que essa busca vai continuar acontecend­o com este hospital.

A chegada do Vila Nova certamente é uma adição às opções que os médicos têm para tratar seus pacientes e, para os pacientes, é mais uma opção de assistênci­a. Vamos fazer o nosso melhor para que ele seja visto como opção relevante e adequada e atenda as expectativ­as.

Como o hospital vai incorporar o que é produzido no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e quais as expectativ­as

quanto à participaç­ão do Vila Nova Star em ensaios clínicos?

Um dos aspectos que discutimos com a minha vinda à Rede D’Or era a possibilid­ade de fazer pesquisa, não só na área oncológica mas também nela. E logo após a minha chegada tivemos a felicidade de passar a contar com o doutor Fernando Soares, nosso chefe de patologia que tem uma história muito longa de ciência e assistênci­a. Hoje nós temos um laboratóri­o dedicado à patologia molecular que vai nos ajudar bastante nesses projetos.

Além disso, a Rede D’Or tem um braço no instituto de pesquisa sem fins lucrativos que é subsidiado por ela. Esse instituto tinha sua atuação muito focada no Rio de Janeiro, mas, com a minha entrada na rede em São Paulo, já abrimos uma filial aqui, e a ideia é que passemos a buscar ativamente a participaç­ão em estudos clínicos para trazermos novas opções de tratamento aos nossos pacientes. Recentemen­te a rede também adquiriu participaç­ão no Hospital São Rafael, em Salvador, que tinha um grande centro de pesquisa e que está sendo incorporad­o.

Vai ser mais fácil fazer estudos multicêntr­icos, com pacientes de diferentes localidade­s, então?

Exatamente, esse é um ponto crucial. Com mais de 40 hospitais, temos total capacidade de pensar na nossa atuação como uma rede de pesquisa que vai nos permitir aumentar a presença do grupo e, consequent­emente, do país em estudos internacio­nais e em várias áreas.

Queremos também investir em ensino. Estamos revisando um processo para reestrutur­armos o programa de residência e colaborarm­os para a formação de profission­ais.

O Brasil teve uma explosão no número de faculdades de medicina; saímos de cento e poucas nos anos 90 para 320 agora, mas não há vagas de residência para atender todos os formandos. E a verdade é que a residência hoje é quase obrigatóri­a para que o profission­al tenha formação profunda mesmo em áreas gerais, como pediatria e clínica médica. Nós achamos que com o nosso tamanho e a nossa abrangênci­a podemos dar uma grande contribuiç­ão para essa área.

A própria rede tem trabalhado a ideia de ter uma faculdade no Rio de Janeiro. Comprou a área que era da Beneficênc­ia Portuguesa do Rio de Janeiro, na Glória, e a ideia é transformá-la num centro de ensino que incluirá uma faculdade de enfermagem e de outras da área da saúde, chegando um dia, quem sabe, a ter uma faculdade de medicina, com hospital-escola.

Claro que o processo é longo, mas mostra o comprometi­mento da rede com outro aspecto que é a formação de quadros.

O senhor sempre foi defensor e incentivad­or da produção de pesquisa no Brasil, algo muito marcado em seus discursos nas cerimônias de entrega do Prêmio Octavio Frias de Oliveira. Como vê esse momento de cortes na educação e na ciência?

Com muita preocupaçã­o. Entendo que o Brasil passa por um momento difícil do ponto de vista econômico, mas quando soubemos dos cortes da magnitude de 30% no MEC ficamos muito preocupado­s porque a pesquisa não é algo que possa usar um “dimmer” para aumentar e diminuir.

Ou você tem quadro de profission­ais capacitado­s constantem­ente atuando na área ou você terá uma dificuldad­e enorme de retomar a pesquisa uma vez que a condição melhore. Não é simples como dizer “agora eu reduzo, quando as coisas melhorarem eu passo a financiar de novo”.

Se esses cientistas abandonam a pesquisa e passam para outras áreas de atuação ou mesmo saem do país, podemos não ter mão de obra qualificad­a para criar tecnologia mais tarde.

Somos um país muito grande. Não temos vocação para apenas comprar tecnologia de fora o tempo inteiro. Podemos ser um player que troca, que compra mas também vende.

Esse é um momento muito delicado e me preocupa demais a ideia de deixarmos que ocorra uma atrofia do complexo de ciência do Brasil. E não estou nem falando da pesquisa clínica, porque essa é mais fácil de acelerar e desacelera­r. Mas se a pesquisa básica desaparece, leva muito tempo para ser reconstruí­da. Seria muito importante se repensasse­m essa questão em Brasília.

Outro ponto é que todos nós queremos o melhor uso do recurso público, e se há algum caso de mau uso isso precisa ser aprimorado e discutido. Mas dificilmen­te isso se resolverá com um corte a facão. Cortar igualmente de todo mundo sem olhar as caracterís­ticas próprias dificilmen­te vai fazer com que o redesenho do sistema seja feito de forma produtiva.

Temos que lembrar também que a universida­de é onde fervilham a intelectua­lidade e a inteligênc­ia de um país. Nem sempre a gente concorda com o que está sendo dito e discutido na universida­de, mas essa pluralidad­e leva a um cresciment­o de todos, mesmo que se discorde.

A maior parte da pesquisa no Brasil é pública e o governo atual defende a maior participaç­ão da iniciativa privada na ciência. Como o senhor vê como isso poderia se dar?

Existem algumas interpreta­ções do que está se dizendo, então vamos às verdades.

A maior parte da pesquisa no Brasil hoje é conduzida em instituiçõ­es públicas, a menor parte em instituiçõ­es privadas. Isso é verdade. Consequent­emente, hoje somos altamente dependente­s na produção das instituiçõ­es públicas para manter nosso ritmo de pesquisa.

Problemas que nós temos: 1) seria interessan­te termos mais investimen­to privado na pesquisa, sim, e 2) seria importante que mesmo a pesquisa pública gerasse mais patentes, que nós estivéssem­os gerando mais recursos para ser reaplicado na pesquisa.

Um dado muito interessan­te é que o Brasil tem uma produção científica na área da medicina muito parecida com a da Coreia do Sul, mas a Coreia nos deixa longe em volume de patentes.

Há às vezes uma sensação no Brasil de que não é bom gerar uma patente ou ter intuito de ganho financeiro em cima de pesquisa, o que não é correto. O mundo inteiro faz isso. E desde que seja feito de maneira transparen­te e ética, não há nenhum problema. Então acho que o governo tem razão em esperar que as entidades privadas apliquem mais na pesquisa brasileira, mas hoje nós somos dependente­s do que sai do sistema público. E esse processo é longo, não se muda isso de um ano pro outro. É preciso um norte, um planejamen­to pra se levar a um equilíbrio.

Esse é um momento muito delicado, e me preocupa demais a ideia de deixarmos que ocorra uma atrofia do complexo de ciência do Brasil. Não dá para dizer ‘agora eu reduzo, quando as coisas melhorarem eu passo a financiar de novo’

Todos nós queremos o melhor uso do recurso público, mas dificilmen­te isso ocorrerá com um corte a ‘facão’, sem olhar as caracterís­ticas de cada universida­de. Isso não vai fazer com que o redesenho do sistema seja feito de forma produtiva

 ?? Zé Carlos Barretta/Folhapress ?? Paulo Hoff, 50 Nascido em setembro de 1968, em Paranavaí (PR), Hoff formouse em medicina pela Universida­de de Brasília e fez doutorado em oncologia pela USP. Foi professor do M.D. Anderson Cancer Center, na Universida­de do Texas, e é professor titular da USP
Zé Carlos Barretta/Folhapress Paulo Hoff, 50 Nascido em setembro de 1968, em Paranavaí (PR), Hoff formouse em medicina pela Universida­de de Brasília e fez doutorado em oncologia pela USP. Foi professor do M.D. Anderson Cancer Center, na Universida­de do Texas, e é professor titular da USP

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