Folha de S.Paulo

Zumbis consumista­s de Jim Jarmusch abrem Cannes

Em ‘Os Mortos Não Morrem’, do diretor americano Jim Jarmusch, criaturas vão atrás de wi-fi e TV

- Guilherme Genestreti O jornalista se hospeda a convite do Festival de Cannes

No papel de um zumbi, o roqueiro Iggy Pop cambaleia em busca de jarras de café. Assim como ele, os demais cadáveres ambulantes do filme “Os Mortos Não Morrem” grunhem em busca de algo específico: doces, wi-fi, TV a cabo, ferragens, calmante.

Em seu novo longa, o diretor americano Jim Jarmusch levou ao pé da letra a ideia de que a sociedade de consumo, em particular a de seu país, está zumbificad­a. A produção, que abriu o atual Festival de Cannes, aprofunda, na chave cômica, as divagações antimateri­alistas que o cineasta já havia explorado em “Paterson”.

Donald Trump e os republican­os, sempre eles, aparecem em referência­s aqui e ali —com uma corruptela do lema do presidente estampada no boné vermelho de um fazendeiro reacionári­o e nas falas de um porta-voz do governo que vai às rádios desacredit­ar qualquer teoria científica.

Jarmusch, uma das maiores vozes da produção independen­te americana, encena sua tese numa cidadezinh­a pacata em um estado não identifica­do. É ali que pululam fenômenos esquisitos: os animais domésticos somem, as formigas perambulam sem rumo e a lua está recoberta por uma névoa que parece despertar os mortos. Tudo é fruto do fato de o planeta Terra ter saído de seu eixo.

Mas explicaçõe­s são o que menos importa à trama. O diretor está mais preocupado em explorar o caos que acomete aquele pequeno povoado assolado por zumbis.

Entre uma piada autorrefer­ente e outra, um trio de policiais vividos por Bill Murray, Adam Driver e Chloë Sevigny precisa conter a infestação. Só que eles não são tão guarnecido­s espiritual­mente quanto a dupla “desapegada” da trama, um eremita sem nenhuma posse interpreta­do por Tom Waits e uma espadachim budista feita por Tilda Swinton.

É aí que a mensagem de Jarmusch fica ainda mais literal e menos potente. O diretor toma a metáfora da invasão zumbi, que no cinema já serviu de alegoria para males que vão do terrorismo à doença, para dar a ela o seu significad­o mais óbvio. E para dizer que os mais preparados para contê-la serão os que forem mais desprendid­os da sanha consumista.

“Os Mortos Não Morrem” é o primeiro dos 21 títulos que terão de ser avaliados pelo júri do Festival de Cannes, que neste ano tem o seu primeiro presidente latino-americano da história, o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu.

Em conversa com a imprensa, o diretor de “Birdman” e “O Regresso” disse que não pretende levar em conta o nome do cineasta ou o seu gênero na hora de premiar os filmes.

A resposta foi uma forma de desviar da grita feminista de movimentos como o #MeToo, que neste ano fizeram barulho antes de a mostra começar, contestand­o a homenagem ao ator Alain Delon, que já afirmou ter estapeado mulheres.

Ainda mais inflamável é a escalação de “Mektoub, My Love”, novo filme do tunisino Abdellatif Kechiche, que disputa a Palma de Ouro. No ano passado, o diretor de “Azul É a Cor Mais Quente” foi acusado de ter abusado sexualment­e de uma atriz não identifica­da.

Iñárritu não precisou responder a essas questões espinhosas e centrou fogo em alvos mais evidentes num evento como esse, caso do presidente Trump. Ao comentar o fato de ter sido chamado para comandar o corpo de jurados, disse que o convite é uma “declaração que fala por si só” em relação às políticas anti-imigração nos Estados Unidos.

“Parece que cada tuíte [de Trump] é um tijolo de isolamento que cria paranoia e ameaça”, afirmou.

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Loic Venance/AFP Parte do elenco e convidados para a exibição de ‘Os Mortos não Morrem’, do americano Jim Jarmusch (quarto a partir da esq.), em Cannes
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Fotos Divulgação Bill Murray, Chloë Sevigny e Adam Driver em ‘Os Mortos Não Morrem’, de Jim Jarmusch

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