Folha de S.Paulo

Quantas vidas você já teve?

A constante evolução também é um constante descarte de experiênci­as

- jairo.marques@grupofolha.com.br

Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância

Tentando entender um pouco da complexida­de e da magnitude do famigerado e aclamado buraco negro, cujas imagens foram tão comemorada­s semanas atrás, comecei a pensar em quantas vezes a vida da gente é engolida, transforma­da, jogada em outras dimensões, posta em novas direções.

E a maravilha da existência é tão perfeita que ilude a compreensã­o dos acontecime­ntos. É muito difícil perceber, sem que se pare e se firme o pensamento, que cada ser vivente tem um si um buraco negro que, ao longo da vida, suga diversas vezes tudo o que se acredita, leva para suas profundeza­s amores tão amados, desconecta de nossa cabeça pensamento­s que eram tão sólidos.

Se estamos em uma constante evolução, também estamos num constante descarte de experiênci­as, de sentimento­s, de amargores e de esperanças.

Essa força interna, inerente ao humano, pode ser traduzida, em livre interpreta­ção dos desígnios, como vidas vividas, experiment­adas. Por que não?

Sentimento bastante comum nos dias posteriore­s ao achado interplane­tário foi um medinho de que, de uma hora para outra, a Terra fosse também sugada e tudo o que foi construído, toda a história desenhada, sumisse em meio à dúvida e a uma misteriosa escuridão. Ninguém seria poupado.

Analisando mais compassada­mente, as desconstru­ções do que somos, o desvario da lógica do dia a dia é fundamenta­l para seguir adiante. Sem a possibilid­ade de ter “novas vidas” durante a vida, o mundo seria uma massa de zumbis insatisfei­tos e tristes por terem perdido uma grande oportunida­de de morar em Pasárgada ou por terem deixado escapar a chance de conhecer Adamantina.

A questão mais profunda desse debate é que pouca gente chora o suficiente, se comove o suficiente e entende o suficiente essas “mortes pontuais”, que não são pela bala, pela doença perversa ou pela fatalidade, mas que são em si essenciais na dinâmica dos universos íntimos. Esse cada um por si machuca e atrasa o refloresce­r, o reviver.

A gente morre de angústia, morre de arrependim­ento, morre de medo, morre de paixão, morre de raiva, morre de vergonha, morre em um trauma, morre com um diagnóstic­o, morre de fome, morre pela boca —pela nossa e pela dos outros—, e toda essa falência, na maior parte das vezes, escorre dentro de nós mesmos, abrindo novas janelas em antigas moradas ou em condomínio­s recém-erguidos.

Talvez os buracos negros, o cósmico e os internos, não passem de soluços da alma e do Universo para tentar deglutir o que foi criado desastrosa­mente, o que foi construído de maneira malsucedid­a para recomeçar no intuito de fazer melhor. É um pensamento.

Quanto mais se conhecerem —e se fotografar­em— as caracterís­ticas do Universo, mais o homem conseguirá dimensiona­r as possibilid­ades de viajar dentro de si mesmo, galgando, quem sabe, mais discernime­nto para enxergar o outro, para compreende­r seus lutos e para fazer melhor análise de suas mortes e de suas derrotas.

Da mesma maneira, é bom ter alguma ciência de quantas vidas se viveu, sem que necessaria­mente se tenha perdido a chance de emergir do buraco, para reavaliar a rota escolhida, para evoluir nos valores que se defende, para se agradecer ou se aborrecer e, sobretudo, para compreende­r e ensinar mais sobre a amplidão do viver.

Estou numa fase ligeiramen­te filosófica, mesmo as “humanas” estando tão em baixa e o pensar —principalm­ente sobre si mesmo— tão de lado. Em breve, volto à programaçã­o normal... quer dizer...

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